A cultura popular corresponde aos segmentos sociais subalternos

1É notório observar, nos últimos anos, o crescente interesse pelas chamadas artes populares por diversas pessoas, instituições e áreas de conhecimento. Outrora denominados objetos de folclore e/ou cultura popular, muitas vezes coletados e classificados sob um olhar presentista e, não raro, sob forte tutela do Estado e em torno dos quais circulava um discurso sobre uma ideia de nação, observa-se, a partir dos anos 1990, um redirecionamento do olhar sobre esses bens culturais (Canclini, 2008; Lima, 2010; Reis, 2013; Almeida e Alves, 2009; Segalen, 2013; Mazé, 2013).

2Alguns caminhos têm se mostrado sobremaneira relevantes, como: processos de patrimonialização; políticas governamentais de cultura; projetos de (re)musealização; processos de artificação e inclusão nos sistemas de certificação, como as Indicações Geográficas. Cada um deles segue fluxos com finalidades distintas. Não raro, no entanto, se cruzam e o diálogo entre aqueles que os fomentam é, também não raro, cacofônico.1

3Em conjunto, podem ser pensados como sistemas de legitimação de culturas que envolvem o deslocamento do status quo de uma determinada pessoa e/ou bem cultural a uma dimensão de reconhecimento e valorização nem sempre dialógica.2 São formas de ação (Becker, 2010), mecanismos por meio dos quais as culturas populares têm sido afetadas com discursos que variam desde a inovação criativa à nostalgia da perda; da supervalorização do mercado à salvaguarda como relíquia.

4Dentre os vários agentes que vêm atuando neste campo, os museus e as instituições culturais ocupam destacado papel no desenvolvimento de ações que vão desde repensar suas coleções, exibições e projetos educativos até a busca de formas mais horizontalizadas de execução de políticas públicas de cultura. Cartografias culturais, projetos de memória local, inventários sobre patrimônio imaterial, processos dialógicos de guarda de objetos, devolução de coleções, curadorias compartilhadas, museus de território, a céu aberto, a rua ou determinado percurso transformado em museu, para além dos projetos de musealização levados a cabo pelos próprios detentores dos bens culturais, são alguns exemplos de perfis de projetos e programas que vêm sendo realizados.3

5Esse cenário dialoga, de modo amplo, com um conjunto de questionamentos às instituições museológicas e de cultura e seus sistemas de representação sobre um “eu” e um “nós” que emergiram no mundo pós-colonial; de modo específico, com a obsessão por passados e culturas que atinge também as culturas populares, que descobriram nessas instituições um valioso veículo de reivindicações políticas e por cidadania, para além de passados, memórias e identidades (Clifford, 2010; Reis, 2013; Freire, 2016; Athias, 2016; Reed, 2009). De maneira cada vez mais contundente, tais espaços tornam-se zonas de negociação e democratização de culturas demandando que se reinventem.

6Com base no exposto, este texto tem por objetivo trazer alguns comentários sobre o papel dos museus e das instituições culturais na elaboração e execução de políticas públicas de cultura, a partir da descrição e análise de uma experiência específica, a saber, o Programa Sala do Artista Popular (SAP), realizado pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (CNFCP), situado no Rio de Janeiro. Criado na década de 1980 com os objetivos de documentar, valorizar e difundir as artes populares no país, a SAP, como é conhecida, nos instiga a pensar sobre algumas questões: Que diálogos promove no campo das artes populares? Como vem sendo apropriada ao longo do tempo? E qual a sua atualidade? O que permite dizer sobre esse súbito “assédio” contemporâneo sobre as artes populares e qual o papel dos museus e das instituições culturais nesse contexto?

Artes populares e políticas de cultura

7Observa-se, na literatura recente sobre as políticas públicas de cultura, uma explícita inquietação quanto à necessidade de repensar e ampliar seus limites e possibilidades para além da clássica abordagem que as compreendem como processos de intervenção estatal direta, tendo como norte a ideia de nação (Coelho, 2004). Autores como Nestor Canclini, por exemplo, chamam a atenção para uma extensa rede de atores em âmbito transnacional influindo nas políticas de cultura fomentadas pelo mercado no mundo contemporâneo. Elas estariam imersas, assim, em hibridismos e redes, conformando outras territorialidades culturais que não se restringem à ideia de nação. Segundo o autor,

Não pode haver apenas políticas nacionais num momento em que os maiores investimentos em cultura e os fluxos de comunicação mais influentes, isto é, as indústrias culturais, cruzam fronteiras, nos agrupam e se conectam de forma globalizada, ou pelo menos geoculturais ou lingüísticas. (Canclini, 2001: 65)

8Antônio Rubim (2011) argumenta que, atualmente, há, além das dimensões transnacionais sugeridas por Canclini (2001), um complexo conjunto de atores estatais e não estatais atuando nesse campo. O próprio Estado já não pode ser pensado de maneira monolítica, mas em suas diferentes escalas e formas de ação. Em relação à sociedade civil, advoga que cabe indicar não somente o mercado, como também as associações, ONGs e movimentos sociais organizados. Os limites entre cada um deles, no entanto, tornam-se cada vez mais turvos. O autor lembra ainda que toda política cultural traz embutida uma dada concepção de cultura. Assim, a amplitude do conceito de cultura utilizado define os recortes e seleções dos grupos que poderão ou não estar inclusos, as questões que serão enfrentadas, bem como as transformações que serão buscadas. Não por acaso, afirma:

Somente políticas submetidas ao debate e crivo públicos podem ser consideradas substantivamente políticas de cultura. Sempre é bom lembrar que tal negociação acontece entre atores que detêm poderes desiguais e encontram-se instalados de modo diferenciado no campo de forças que é a sociedade capitalista contemporânea. Assim, políticas públicas de cultura podem ser desenvolvidas por uma pluralidade de atores político-sociais, não somente o Estado, desde que tais políticas sejam submetidas obrigatoriamente a algum controle da sociedade, por meio de crivos públicos, que envolvem sempre a participação nos processos de debates e deliberativos. (Rubim, 2011: 70)

9Ao chamar a atenção para o caráter seletivo das políticas culturais e a necessidade de diálogo para a construção das mesmas, o autor se aproxima de alguns pontos fulcrais sobre o desenvolvimento daquelas políticas voltadas para as culturas populares. A necessidade de um caráter mais equânime nas relações de força, de uma maior representatividade, e da democratização do acesso às mesmas são alguns exemplos. Crespo et al. (2015) argumentam que, desde os anos 1990, as políticas culturais vêm incorporando, ainda que de modo seletivo, bens culturais provenientes de setores subalternos e marginalizados. As recomendações e normativas da Unesco, resultantes das pressões sociais de grupos historicamente invisibilizados do Cone Sul, tiveram considerável influência nesse processo, sobretudo com a ampliação da perspectiva do patrimônio legitimado pelo Estado e o desenvolvimento da noção de patrimônio imaterial a partir da década seguinte. Como sublinham:

[...] se em linhas gerais, ao longo das últimas décadas, houve uma “incorporação” de expressões da cultura popular e de certas tradições e expressões afro-indígenas na área de políticas públicas, é feita em uma chave hegemônica, a fim de regular as “diferenças permitidas”, em detrimento daquelas que não são toleradas (Hle, 2004). Assim consideradas, as políticas culturais configuram um espaço público em que interesses e lógicas díspares se cruzam, um terreno que opera tanto para a produção de legitimidades quanto para o processamento de arenas disputadas entre diferentes atores sociais. (Crespo et al., 2015: 11)

10Não obstante a especificidade atual do tema, essa discussão tomou fôlego no campo das artes e culturas populares a partir do pós-guerra. Observa-se em diversos países uma intensa movimentação no sentido de pesquisar, documentar e coletar séries de objetos, lendas, mitos e depoimentos orais que deram origem a diversos museus, arquivos, publicações, como também a consolidação de um campo de estudos e instituições voltadas para pensar diretrizes para essa área. A crença no desaparecimento e fragmentação de um mundo dito tradicional associada a processos de urbanização são fatores recorrentemente citados como impulsionadores desse processo (Vilhena, 1997; Branco e Oliveira, 1993).

11No Brasil, é conhecido o chamado “Movimento Folclórico”, que se estruturou a partir da década de 1940 por meio da Comissão Nacional de Folclore (CNF), em consonância com o surgimento de instituições e organismos em diversos países. Fora criado como órgão paraestatal, na alçada do Ministério das Relações Exteriores, a partir da articulação do musicólogo Renato Almeida. Posteriormente, este grupo articulou a criação da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro (CDFB), em 1958, órgão executivo com recursos estatais; e em 1976, tornou-se um órgão governamental, convertendo-se no Instituto Nacional do Folclore. Atualmente denominado Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (CNFCP), é parte da estrutura do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), por meio de seu Departamento de Patrimônio Imaterial, desde 2003.

12De modo sintético, pode-se dizer que a trajetória da CNF é marcada pela busca por institucionalização e centralidade das culturas populares enquanto um campo de saber que demandava pesquisa científica e elaboração de políticas públicas de fomento. Para tanto, o movimento se articulou nacionalmente a partir de comissões estaduais, agregando intelectuais de distintas áreas de formação (Vilhena, 1997). Essa rede se fez visível por meio de publicações, exposições, semanas e congressos de folclore e a articulação intelectual e política de seus representantes em âmbito nacional e internacional.4

13Os folcloristas foram exitosos em pautar uma agenda para a construção de políticas públicas voltadas para as culturas populares no país, apesar das duras críticas recebidas no ambiente acadêmico.5 Elaboraram uma série de projetos, programas de apoio ao artesanato, fomentaram a criação de museus, bibliotecas e arquivos, além de uma série de livros, revistas, boletins e discos.6 A perspectiva de trabalho, no entanto, apresentava recorrentemente o folclore e a cultura popular como uma produção coletiva e anônima – ainda que em diversos manuscritos e correspondências sejam observadas a autoria e a presença de sujeitos identificados.

14O relativo protagonismo dos folcloristas na promoção de políticas de cultura para o campo das culturas populares começa a ganhar novos contornos no país a partir de meados dos anos 1970. O campo das culturas populares recebeu atenção do Estado em um momento de fortalecimento e consolidação de instituições e linhas de atuação do governo federal no campo da cultura, no Brasil. Discutia-se, ainda na gestão do governo Geisel, em pleno regime ditatorial, formas mais amplas de se pensar a cultura não vinculadas exclusivamente ao Ministério da Educação e Cultura (MEC). Tais discussões foram o embrião do Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC).

15Em 1975, Aloísio Magalhães assume a direção do CNRC com um grupo que reunia “setores modernos e nacionalistas do governo” (Oliveira, 2008: 115), criado para pensar uma nova face para a então atual política cultural do país. Seus objetivos eram, por meio de ações interministeriais, promover o desenvolvimento econômico, a preservação cultural e pensar a identidade nacional a partir dos produtos brasileiros. A produção artesanal e a história das tecnologias nacionais tiveram grande importância nesse projeto, enquadrando-se na perspectiva teórica de Magalhães de pensar a nação a partir de sua pluralidade de culturas (Calabre, 2010; Gonçalves, 1996). O órgão trabalhou até 1979, a partir de projetos estruturados em grandes segmentos: “artesanato, levantamentos socioculturais, história da tecnologia e da ciência no país e levantamento da documentação sobre o Brasil” (Oliveira, 2008: 115).

16Em seguida, ao assumir a direção do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), procurou imprimir-lhe outro perfil, buscando superar a visão do patrimônio associado ao barroco e ao colonial. Nesse sentido, inovou ao propor uma tentativa de apresentar o Brasil como um país diverso e culturalmente heterogêneo e uma ideia de nação a ser visualizada por uma pluralidade de grupos sociais e culturais. Por essas atividades, Aloísio Magalhães vem recentemente sendo classificado, junto a Mário de Andrade, como precursor de uma concepção alargada de patrimônio cultural e da política do patrimônio imaterial no país. Sua atuação, no entanto, foi bruscamente interrompida por seu falecimento em 1982.

17Essa mudança estava alinhada ainda, no Brasil, a um outro elemento que diz respeito às reorientações da antropologia naquele momento. A partir do interesse pelos chamados estudos urbanos, que revelaram novas possibilidades de atuação da disciplina, o campo até então dominado por folcloristas se mostrou um “novo” e fértil filão de estudos. Esse momento de ebulição intelectual e política – haja vista ser o momento também da abertura democrática após quase duas décadas de regime militar – abriu caminho para a entrada de novos agentes nesse campo.

18É sob a influência de Gilberto Velho, um dos principais nomes da antropologia brasileira ligada aos estudos urbanos, e de Aloísio Magalhães que Lélia Coelho Frota assume a direção do então Instituto Nacional de Folclore – atual CNFCP – em 1982. Escritora, com formação em museologia, Lélia tem uma passagem curta, porém significativa, ao tentar renovar o quadro institucional e reorientar o seu paradigma teórico de atuação. Desde então, a instituição incorporou um discurso e uma estratégia de atuação de caráter marcadamente antropológica. Entretanto, apesar da narrativa oficial de mudança de discurso do “folclorismo” para uma “antropologização”, um olhar acurado permite perceber, de fato, continuidades e rupturas entre essas perspectivas, seja no quadro técnico, seja na condução dos projetos da casa. Os principais legados de sua gestão para o atual CNFCP talvez sejam justamente a criação do Programa Sala do Artista Popular, em 1983, e, no ano seguinte, a exposição de longa duração do Museu de Folclore Edison Carneiro, que integra a estrutura do CNFCP.

19O Programa Sala do Artista Popular – SAP – do CNFCP/IPHAN foi criado em 1983, e seus objetivos são a pesquisa, documentação, difusão e fomento das artes populares e do considerado artesanato tradicional brasileiros. Trata-se de uma proposta que envolve várias etapas de trabalho – e que culmina com a realização de uma exposição com a publicação de um catálogo e a venda de objetos –, bem como a articulação com instituições locais e o consentimento e participação dos artífices neste processo. No texto de abertura do primeiro catálogo da SAP, Lélia Coelho Frota (que na altura assinava Lélia Gontijo Soares) afirma:

Tal iniciativa vem atender às diretrizes para a operacionalização da política cultural do MEC [Ministério da Educação e Cultura], no tocante à valorização dos bens culturais não consagrados, bem como da proteção do produto cultural brasileiro através do apoio àqueles rituais e formas de representação – artesanal, musical, teatral e/ou outras que procedam da experiência coletiva de um grupo pertencente a uma região ou segmento social definido, desde que esteja aí evidenciado um caráter eminentemente popular. (Soares, 1983: 1).

20Ainda segundo a autora, o programa estava em acordo com as recomendações da Carta do Folclore Brasileiro (IBECC, 1951)7 ao proceder na documentação e implementação de ações diretas e indiretas nas comunidades rurais e urbanas em que se encontram os saberes populares. A SAP se alinhava também, segundo Lélia Gontijo, com a perspectiva trazida por Aloísio Magalhães de pensar as culturas populares enquanto bens culturais passíveis de serem promotores do desenvolvimento cultural e econômico a partir do incremento de políticas públicas de cultura (Magalhães, 1985). A essência desta proposta mantém-se ainda hoje, como se nota no atual texto de abertura dos catálogos da série, ao afirmar que o programa:

[...] tem por objetivo constituir-se como espaço para difusão da arte popular, trazendo ao público objetos que, por seu significado simbólico, tecnologia de confecção ou matéria-prima empregada, são testemunho do viver e fazer das camadas populares. Nela, os artistas expõem seus trabalhos, estipulando livremente o preço e explicando as técnicas envolvidas na confecção. (CNFCP, 2018).8

21Com o passar dos anos, a SAP tornou-se uma referência, possibilitando, para além do reconhecimento simbólico, o escoamento da produção desses indivíduos e grupos, abrindo-lhes portas para novas oportunidades de comercialização. Em 2018 chegou aos seus 35 anos de existência, com quase duzentas edições realizadas, contemplando os mais variados atores sociais e técnicas de produção das cinco regiões do país.

22A trajetória do programa cristalizou também uma forma de o fazer que pode ser pensada hoje como um processo análogo a um ritual. De modo amplo, os museus e as instituições culturais podem ser pensados como espaços rituais, na medida em que são espaços culturalmente demarcados por significados específicos, envolvendo também um certo grau de performance coletiva (Duncan, 2008; MacDonald, 2005). Para além dos ritos e performances sugeridos pelos museus, normalmente referindo-se aos visitantes em seus espaços arquitetônicos e museográficos, sugere-se aqui que a própria dinâmica de execução de seus projetos envolve também uma dimensão ritualizada em que cada etapa corresponde a temporalidades e significações performatizadas pela equipe responsável.

23No caso em pauta, a SAP envolve um conjunto de diversas e bem sublinhadas etapas de produção ‒ cronograma, articulação de redes e parcerias, pesquisa, exposição, comercialização, encontro de artesãos ‒ e temporalidades ‒ o tempo do saber-fazer por parte dos artífices, o tempo de produção de cada etapa do programa e o tempo da burocracia estatal para execução de uma política pública de cultura. Cada qual envolve valores, estratégias de ação e agentes específicos. Assim, o desenvolvimento da SAP depende da necessária, e por vezes complexa, sintonia entre eles para que seja concretizada.

24O primeiro passo para a realização de uma edição do Programa SAP é estabelecer um cronograma. Anualmente são realizadas cerca de oito exposições e, para tanto, a instituição recebe propostas em fluxo contínuo, que surgem de formas variadas: por indicação de pessoas que conhecem algum artífice; pelo contato dos próprios artistas; por sugestão de pesquisadores que atuam no campo, bem como de colecionadores, galeristas, entre outros. Para definir esse calendário, existe uma comissão avaliadora, que define os critérios também para a escolha dos nomes seguindo parâmetros como: ser obra de arte popular e/ou artesanato tradicional; conjugar iniciativas individuais e de grupos; contemplar uma distribuição geográfica que atenda o maior número de regiões do país.

25A segunda etapa envolve a construção de redes para a produção da SAP. Procura-se consolidar a anuência do artista ou da comunidade por meio de contato prévio com o agendamento da visita da equipe do CNFCP (composta de um pesquisador e fotógrafo). O estabelecimento de parcerias locais também é um ponto com grande ênfase no Programa. Acredita-se que estas parcerias são fundamentais para criar e/ou consolidar o diálogo do artífice com instituições locais, de forma a proporcionar maior autonomia para a produção e difusão de seu trabalho. Em alguns casos, os artistas são pessoas já reconhecidas e com bom trânsito em secretarias e órgãos de cultura. Há outros, no entanto, e não raro, em que são pessoas sem reconhecimento algum em suas localidades. Como parte da proposta, procura-se, sempre que possível, itinerar a exposição para a cidade onde vive o artista. Esta tem sido uma estratégia eficaz para o seu reconhecimento local, como também de devolver para sua comunidade o trabalho de documentação realizado.

26O terceiro passo é a pesquisa de campo. Ela é realizada por uma equipe básica composta por um pesquisador e um fotógrafo. O período médio de realização deste trabalho é de cinco dias. Reconhece-se a necessidade de uma estadia maior para o levantamento de dados e a construção, de forma mais sólida, de uma cumplicidade com os artesãos e as redes de instituições envolvidas no processo. No entanto, as restrições orçamentárias e burocracias de Estado limitam uma pesquisa mais ampla. Em campo, procura-se documentar o processo de trabalho, a biografia dos artistas e o local em que vivem, para além das conversas com instituições parceiras. Este material é depositado nos arquivos institucionais e fica disponível para consulta, sendo cada vez mais presente a preocupação em devolver também o material aos artesãos.

27A produção de uma exposição com catálogo e venda de produtos é o ponto alto do Programa. São os artífices que definem que objetos serão enviados, bem como os preços por que serão vendidos. Tal seleção envolve diálogo entre o gosto de seus produtores e questões imponderáveis, como a sazonalidade e a temporalidade da produção. A museografia do espaço, por sua vez, é pensada por técnicos do CNFCP após o recebimento das peças. Procura-se criar uma ambientação que conjugue as características estéticas e etnográficas do objeto, o seu autor e o seu contexto, por meio de iluminação, imagens e texto. Os objetos são expostos, salvo raras exceções, sem vitrines, como uma forma de tentar aproximá-los do público. Um recurso que tem sido frequentemente utilizado é a exibição contínua, na sala de exposição, de um vídeo sobre o(s) artista(s), feito pelo pesquisador em campo.

28O catálogo é impresso em formato A5 em orientação paisagem, numa tiragem de mil exemplares. Contém, em média, 30-40 páginas, que buscam apresentar uma biografia dos artistas e suas obras com uma estética visual e estilo de texto que se tornaram bastante característicos com o passar do tempo. É distribuído gratuitamente na abertura da mostra e fica disponível on-line no site institucional. Parte da tiragem é ofertada aos artífices e parceiros institucionais que participaram da produção do evento.

29Nos dias em torno da data de inauguração, os artistas são convidados para uma agenda de atividades predefinidas pelo Programa. Em geral, são cerca de três dias que se estendem da véspera ao dia seguinte à inauguração da exposição. Também por razões logísticas e burocráticas, ainda não é possível ter os artistas por mais tempo e incorporá-los, por exemplo, no processo de montagem da exposição. No tempo em que permanecem no Rio de Janeiro, no entanto, procura-se fazer uma imersão ao universo dos museus e instituições culturais com eles. O objetivo é apresentar-lhes questões como: no que consiste o tratamento museológico de objetos dos quais são autores; qual a importância desses acervos; como funcionam os diferentes setores responsáveis para produzir uma ação como a do programa SAP; quais os contextos de comercialização dos objetos. Em geral, a atividade tem início com uma visita às reservas técnicas do Museu de Folclore Édison Carneiro (MFEC) mediada por técnicos do CNFCP.

30Essas visitas têm se revelado proveitosas, pois possibilitam ao artífice ter contato com peças de outros artistas que trabalham com materiais e/ou técnicas parecidas, bem como artefatos inteiramente diferentes, mas que lhes despertam interesse e curiosidade por motivo qualquer. Isto significa um passo no sentido de melhor compreender as suas próprias produções enquanto parte deste universo de bens culturais denominados arte e culturas populares. Para o MFEC, em específico, têm sido uma experiência frutífera pelas situações em que, para além do aprendizado e da troca de experiências com esses indivíduos, reconhecem peças no acervo das quais pouco se sabia a respeito, ajudando na identificação e classificação das mesmas.

31O ponto principal dessa agenda de atividades é a presença dos artistas na inauguração da exposição, experiência que tem sido enriquecedora sob vários aspectos, sobretudo pelo fato de verem seus trabalhos expostos num espaço museológico, com tratamento museográfico e autoria reconhecida e destacada. É também uma oportunidade para o público que frequenta museus e exposições, para trocar experiências com os artistas, o que tem se mostrado um elemento importante para a valorização e autoestima desses personagens, como afirmou Maria do Carmo, rendeira de Suabara/BA, na primeira edição do Encontro de Artesãos: “Eu fiquei muito impressionada com o cuidado que vocês têm com o nosso trabalho aqui” (apud Ribeiro, 2007).

32Do ponto de vista econômico, fica evidente a importância da exposição, por realizar junto a comercialização dos objetos, ocasião em que os artistas conseguem escoar considerável parte das obras selecionadas para destinar ao programa. O programa conta ainda com um espaço de comercialização permanente voltado para aqueles que expuseram na SAP. Este espaço tem por finalidade ser um local de venda e divulgação do trabalho destes artífices. Ao final da exposição, abriga as peças que não foram vendidas, como também as que são futuramente enviadas pelos artistas, sendo importante elo de comunicação entre artista, público e a própria instituição. Como afirma Marylia Dias, técnica responsável pela gestão do espaço de comercialização: “Eu converso com todo mundo através da peça e acho isso maravilhoso” (apud Ribeiro, 2007). O espaço é mantido por um percentual, de cerca de 25%, que é acrescido ao valor da peça definido pelo artista. É aberto para que enviem suas obras e mensalmente recebem o retorno financeiro do que venderam.

33Em 2007, foi incorporada mais uma etapa a este ciclo, buscando promover a troca e o diálogo entre os próprios artífices que participam da SAP ao longo do ano ‒ o Encontro de Artesãos. Até o momento foram realizadas cinco edições do encontro, nos anos de 2007, 2011, 2012, 2013 e 2017. Com a proposta de ser um evento que possibilite aos artistas discutirem e trocarem experiências entre si sobre temas relacionados à arte que produzem, tem duração de uma semana. A programação divide-se entre diálogos mediados pelo CNFCP, para que os artesãos se apresentem e seus respectivos trabalhos, espaço para livre troca entre eles e visitas a museus, feiras e galerias de arte popular no Rio de Janeiro. Tem se revelado uma experiência frutífera, desencadeando o estabelecimento de novas redes de contato entre os próprios artesãos.

Narrativas de uma história etnográfica das artes populares

34Ao longo de sua história, a SAP se consolidou como um espaço de encontros e trocas de saberes, tornando-se uma referência para a criação de diversas iniciativas análogas no país. A sua continuidade e a ressonância que conquistou entre distintos setores apontam um caminho viável para o desenvolvimento de propostas cujo intuito seja a democratização, visibilidade e circulação das chamadas artes populares e os sujeitos que as produzem.

35Ao completar 35 anos, a SAP construiu também uma história da arte popular brasileira da segunda metade do século xx, cobrindo assim uma lacuna nesta área de estudos. Se a historiografia da consagrada arte brasileira conta com considerável bibliografia produzida, o mesmo não ocorre com os chamados grupos minoritários, subalternos e/ou considerados à margem de um sistema ocidental de arte e cultura (Clifford, 1994).

36No caso das artes populares, é possível encontrar referências específicas na obra de folcloristas e pensadores brasileiros. Vitalino, por exemplo, é um caso exemplar, citado em textos de autores como Manuel Bandeira (1958); Manuel Souza Barros (1964) e René Ribeiro (1959). Neste campo, a iniciativa de Lélia Coelho Frota merece ser destacada em duas obras: Mitopoética de nove artistas brasileiros (1978) e Pequeno dicionário da arte do povo brasileiro. Na introdução desta última, a autora afirma:

Desde que publiquei Mitopoética de nove artistas brasileiros (1975), que enfocava pela primeira vez a vida e o trabalho de indivíduos criadores procedentes de camadas pobres, tive a preocupação permanente de aproximar estética e antropologia, e de contextuar social e historicamente uma produção que até então era apresentada como anônima, anedótica, estática e, acima de tudo, sem conceito. Os artistas que participaram desse livro encontram amplo espaço para não apenas relatar sua história de vida, como para discorrer sobre a sua produção simbólica. (Frota, 2005: 16)

37Lélia argumenta produzir uma obra em diálogo com a história social da arte e da antropologia e estética. Ambos os trabalhos informam ao leitor um panorama sobre a arte popular brasileira de grande fôlego para o momento em que fora produzido. Não por acaso, são ainda hoje referências para pesquisadores no assunto, e apresenta a única informação sistematizada disponível sobre muitos nomes ali descritos.

38Outra obra que se tornou referência é o livro O reinado da lua, de Silvia Coimbra, Flávia Martins e Maria Duarte (2010 [1980]). A obra apresenta amplo mapeamento de 109 escultores do Nordeste brasileiro mostrando uma rica pesquisa documental e visual sobre cada um deles. No prefácio de sua quarta edição, assinado por Paulo Duarte, o livro já é apresentado como “um clássico da sua área” em função de três fatores. Primeiro, pela compreensão de um “processo histórico que transformou objetos antes ‘funcionais’ em obras de arte, passando a serem inscritos pelos ‘cultos’ da sociedade em um mercado de arte específico” (ibidem: 1). Isso teria ocorrido no Brasil a partir do modernismo e sua proposta de uma identidade nacional complexa e ampla. O segundo fator diz respeito ao fôlego documental do livro, considerando a singularidade de cada escultor, sua obra e seu contexto. Por fim, pelo lugar de fala das autoras, apresentando os escultores como protagonistas de sua produção artística. Duarte encerra seu prefácio indicando que, desde o lançamento da primeira edição, o abismo entre arte popular e sistemas de arte só se fez aprofundar. O livro é, assim, relevante por chamar a atenção para a importância desta produção.

39A especificidade da narrativa construída pela SAP, e que pode ser lida em seus catálogos, é a de trazer, junto da história, o contexto estético e a descrição etnográfica de determinada produção, apresentando uma considerável gama documental sobre cada uma de suas edições. Os considerados hoje principais nomes, estilos, locais e suas respectivas visões de mundo estão informados por meio desses catálogos. Muitos deles já haviam sido apresentados por Lélia ou n’O reinado da lua, e trazem nos catálogos da SAP um aprofundamento de informações a seu respeito. Dessa maneira, o programa ganha projeção na historiografia das artes no Brasil, ou da história das artes, de modo geral.

40A SAP produziu também uma visão etnográfica específica sobre o campo. Consolidou uma maneira própria de fazer etnografia, voltada para política pública de cultura, em que um conjunto de temas e questões são indispensáveis em qualquer de suas edições. A história de vida, o contexto e o lugar em que o artista habita, as técnicas e matérias-primas utilizadas no processo de construção, eventuais ritos e performances que envolvem esses objetos constituem um conjunto de questões características. Trata-se de uma antropologia dos objetos que visa apresentar modos de saber-fazer e a importância simbólica destes bens culturais para um público amplo. Por meio de potes, rendas, esculturas, procura dar voz para que as pessoas contem suas histórias (Gonçalves, 2007; Hoskins, 1998; Kopytoff, 1986).

41Nos catálogos podem ser lidos também alguns dos nomes de pesquisadores considerados referência neste campo. Ricardo Gomes Lima,9 por exemplo, assina a pesquisa de 27 edições do programa, dentre os quais vários realizados na região do Norte de Minas Gerais (Lima, 1998, 2004, 2008). Para além deles, produziu uma obra com discussões relevantes sobre o tema, além de sua tese de doutoramento sobre a Cerâmica de Candeal (2012). Guacira Waldeck10 é responsável por 16 edições, dentre as quais, vale destacar o trabalho com Hélio Leites e Efigênia Rolim (Waldeck, 2006), Espedito Seleiro (ibidem, 2012) e Francisco Graciano (ibidem, 2017). É também autora da dissertação de mestrado Vitalino como categoria cultural (ibidem, 2002). Maria Laura Cavalcanti11 também realizou duas edições do programa sobre carnaval (1987, 1995) e sua obra é, hoje, indispensável nas discussões sobre a relação entre ritos, festas e as aproximações entre antropologia e folclore. Lygia Segala,12 cujas pesquisas sobre antropologia e imagem e sobre a obra de Marcel Gauteroth são de suma importância, realizou três edições (Segala, 1987, 1988, 1999). Beatriz Góis Dantas é autora do catálogo sobre a renda de Divina Pastora (2001) e autora do clássico Vovô nagô e papai branco (1988). Por fim, a própria Lélia Coelho Frota assina a edição 52, sobre a ceramista Maria Lira (1994).

42Além disso, o programa deixa também um lastro documental que servirá, e vem servindo, para novas pesquisas e/ou novas ações e projetos de políticas públicas. Nesse caso, talvez o mais evidente sejam os cruzamentos entre os projetos de patrimonialização dos bens imateriais que muitas vezes lançam mão desses documentos para fundamentar processos de inventários. Entre os bens patrimonializados que já foram contemplados pela SAP, encontram-se as paneleiras de Goiabeiras, instrumentos do fandango caiçara, teatro de mamulengo, bonecas Karajá, viola de cocho, renda irlandesa, cuias de Santarém, entre outros.

43Todavia, não se pode perder de vista que, ao produzir uma narrativa histórica e etnográfica da arte popular no Brasil, a SAP produziu também silêncios. Inúmeros são os nomes que, por falta de agenda, orçamento, estrutura ou mesmo por não terem sido considerados adequados ao perfil do programa num dado momento, não foram inclusos. Mesmo entre os nomes que passaram pelo programa, nota-se que muitos galgaram reconhecimento, e outros não.

44Apesar da busca por uma divisão equânime entre esses critérios, nota-se que há uma concentração de trabalhos em determinados estados (ver Figura 1). Fatores como períodos de cortes orçamentários, as demandas recebidas e o fato de que, quanto mais se atua em uma determinada área, maior vai sendo o diálogo e a ressonância do programa, aumentando assim as demandas daquele local, contribuem para isto.

45O programa produz silêncios também quanto aos próprios atores que o construíram. É recorrentemente exaltada a presença fundadora de Lélia Coelho Frota e da SAP como um símbolo da virada antropólogica institucional, junto da exposição de 1984. Sabe-se, no entanto, ter se tratado de um programa construído com o trabalho de vários pesquisadores que passaram pela casa, como Ana Heye, Dinah Magalhães, Elizabeth Travassos, Maria Helena Torres e Ricardo Gomes Lima, que estiveram em sua origem, assim como tantos outros ao longo de sua trajetória, cuja lista seria exaustiva de apresentar neste texto. Todos têm uma contribuição significativa para a continuidade deste programa.

Figura 1 – Número de exposições realizadas na SAP por estado brasileiro

A cultura popular corresponde aos segmentos sociais subalternos

Fonte: Arquivos CNFCP.
Autoria: Elaboração do autor.

46Ao atuar na promoção e difusão das artes populares, a SAP indica que a busca por um passado e cultura é feita por processos de seleção voluntários e involuntários de narrativas, em detrimento de outras possíveis que ficaram pelo caminho, e que concorrem de diferentes formas para a configuração do atual campo das artes populares.

Políticas de cultura: redes, tensões e democratização de culturas

47Com o passar do tempo, a SAP ganhou relevância no cenário das artes populares do país e, consequentemente, um artista ter o seu nome inscrito na lista dos que passaram pelo programa é considerado, nas redes dos mundos de arte (Becker, 2010), um reconhecimento do valor de sua obra. Como afirmou Benedita Lima, figureira de Taubaté/SP, no 1.º Encontro de Artesãos, por conta de sua participação no programa: “Ter peças no Museu do Folclore é como um selo de qualidade”. A SAP tornou-se, sob este olhar, um programa que atribui um status diferenciado, de legitimação de indivíduos que produzem determinado tipo de bens culturais que, em geral, ficam à margem dos consagrados circuitos artísticos.

48Antes disso, observa-se, nos depoimentos dos artistas, que o programa tem ajudado no melhor entendimento sobre a importância e o valor simbólico daquilo que produzem. São recorrentes os relatos ressaltando a importância de ter passado pela SAP como uma espécie de rito de passagem para um processo de singularização de si nos mundos de arte (Becker, 2010), bem como da superação de uma série de estigmas que carregavam. A fala de Núbia, bonequeira de Boa Esperança, na Paraíba (PB), é um desses exemplos:

Aqui na exposição, a gente começou a ver que o trabalho da gente tinha muito valor. A gente mesmo da associação dizia – para que serve isso? Eu acho que isso não serve para nada não – E depois que elas vieram para essa feira aqui, uma turma da gente, que viu que as pessoas davam muito valor ao trabalho da gente. As pessoas vinham comprar e achavam lindo. E olha que, naquela época, nem estava tão bem feito. (apud Ribeiro, 2007)

49A SAP, nesse sentido, pode ser entendida como uma ação voltada para a democratização de culturas e saberes. Há um esforço institucional em criar zonas de contato em diferentes frentes. Entre artistas populares e o universo das instituições de cultura; entre artistas populares e instituições governamentais e não governamentais de diferentes esferas; e entre os artistas entre si e entre os artistas e o público que consome suas obras. O programa tem se caracterizado, dessa forma, por tentar colocar em circulação e contato diferentes olhares e conhecimentos, e propiciar aos atores centrais deste processo melhores condições de caminharem com suas próprias pernas nos mercados de arte e cultura. Como indicam os relatos:

O nosso trabalho ficou esquecido por vinte anos, e só começou a caminhar depois que participamos de um projeto do museu. Ele começou a ser divulgado, não só para o Brasil, mas para o mundo. O prefeito ficou até com vergonha. De tanto a gente batalhar e falar que o nosso trabalho era valorizado aqui no museu, a gente ganhou esse espaço da prefeitura. (Elita Catarina Ramos, artesã de renda irlandesa, de Florianópolis/Santa Catarina, apud Nascimento, 2016)
Agora o nome da gente está no mundo inteiro por causa do museu. Quando alguém vê a boneca esperança e diz que já conhece, isso traz uma belezura na vida da gente. (Ivonete Ferreira da Costa, artesã de bonecas de pano, Esperança/PB, apud Nascimento, 2016)

50Além de terem os objetos que produzem circulando em raio muito mais amplo a partir da divulgação promovida pelo programa, os artesãos indicaram também, em seus relatos no Encontro de Artesãos de 2016, outras façanhas que realizaram a partir da SAP: sair pela primeira vez de sua comunidade e percorrer longas distâncias e fronteiras, lidar com burocracias, negociar com diferentes instâncias, frequentar espaços imponentes como museus, feiras e instituições de cultura, trabalhar fora de casa, representar um grupo, exercer liderança, gerar renda para as suas famílias (ibidem). Tais façanhas são ainda mais destacadas e relevantes no caso das mulheres por terem de superar, somados a todos esses fatores, as desconfianças, preconceitos e limitações impostas pelo machismo do modelo patriarcal familiar.

Quando surgiu a primeira viagem, os meus filhos falaram “Mamãe, como a senhora vai sozinha, a senhora não conhece ninguém?”. Eu falei “Eu tenho boca, eu sei falar”. (Raimunda Azevedo, artesã de cuias, Santarém/PA, apud Nascimento, 2016)
Mandaram o comunicado antes, mas como a cidade estava sem internet, eu recebi era umas oito horas da noite.
[…] Quando foi quatro horas da manhã eu já tava de pé pra pegar o carro, meu irmão ligou e disse “Você é doida?” Eu digo “Sou! Tchau!”. E estou aqui! Se a gente não enfrentar as dificuldades, a gente não trabalha. (Leonor Pereira dos Santos Neto, ceramista, Barra/BA, apud Nascimento, 2016)

51A experiência de contato com pares nas edições do Encontro de Artesãos tem sido uma ação também importante no sentido de terem sua autoestima fortalecida para que possam continuar com o que produzem, sentindo-se capazes de superar as adversidades que surgem:

Se você olhar nesse grupo, as dificuldades são as mesmas de quem vive do artesanato. É muito importante estar aqui aprendendo com todos, vendo o que todos passam, para não ficarmos imobilizados, vitimizados, achando que é impossível, que a nossa vida é difícil e a gente não consegue. (Renilda Maria dos Santos, tecelã, Poço Verde/Sergipe, apud Nascimento, 2016)
Nós trabalhamos em segmentos diferentes, mas somos todos artesãos. Nós fazemos parte da história desse país, independente do segmento que a gente atue. Por isso eu peço que a gente leve em frente o compromisso de ajudar uns aos outros [...]. (Vitalino Neto, escultor, Caruaru/PE, apud Ribeiro, 2007)

52Para além das redes que a SAP procura criar, chamando a atenção para o protagonismo dos artífices, cabe destacar também o não raro cruzamento do programa com outras iniciativas que estão sendo realizadas nas comunidades, cada qual com um discurso próprio de fomento aos locais. Um levantamento realizado sobre as exposições realizadas na cidade de Januária/MG, por exemplo, permite identificar parcerias com instituições como a prefeitura local, a Petrobras, ONG como a ArteSol, etc. O discurso elaborado por essas instituições vai desde a promoção da diversidade até o assistencialismo. Cada qual crê estar realizando, a seu modo, uma obra de promoção de populações marginalizadas (Fonseca et al., 2017).

53Por outro lado, identifica-se também que o próprio CNFCP retorna aos mesmos artesãos e comunidades com alguma frequência. No relatório do primeiro Encontro de Artesãos, cinco (de dez) deles haviam participado de programas do próprio CNFCP, como o Paca ‒ Programa de Apoio às Atividades Artesanais.13 O dado aponta que, embora os programas gerem impactos positivos na vida e na produção artística desses artífices, existe uma demanda por um formato de ação que seja continuado por um período maior de tempo. Assim, se os relatos indicam o potencial transformador da SAP, há certamente casos em que o impacto gerado pelo programa foi mínimo.

54Ainda no tema dos cruzamentos de diversos programas em um determinado local ou pessoa, nota-se que, nos últimos anos, três nichos têm crescido consideravelmente: os inventários com vistas ao registro como patrimônio imaterial, os selos de origem e indicações geográficas, e projetos de coparticipação com designers. Quanto a isso, há uma queixa recorrente em relação à falta de diálogo, com imposição de uma proposta externa ao grupo. Maria José, rendeira de Divina Pastora, afirmou que, embora tivessem “ganhado” o título de patrimônio, não entendiam ainda muito bem o que isto significava e o que poderia oferecer de retorno para elas. Com o tempo, notaram que o título atraiu visibilidade nacional e artesãs de várias localidades passaram a trabalhar utilizando a sua técnica, aumentando, assim, a concorrência. Na sequência, viram na certidão de Indicação de Procedência um caminho para resolver esse problema.

55No entanto, essas artesãs relatam ter sido novamente um processo exaustivo e conduzido de fora para dentro. Após a criação de um conselho avaliador e de fichas técnicas para identificação, controle e rastreamento de cada uma das peças – parte das exigências deste selo –, passaram a enfrentar uma série de dissensos entre as rendeiras quanto à aprovação ou não de determinadas peças. Decidiram, então, interromper provisoriamente o uso do selo, entendendo que primeiro havia a necessidade de fortalecimento das relações internas (Nascimento, 2016).

56Tais ações, por outro lado, trouxeram algumas conquistas, como a autonomia para a produção do lacê, indispensável para a fabricação da renda, por meio da aquisição, em 2018, de um conjunto de máquinas como parte do plano de salvaguarda como patrimônio imaterial da renda de Divina Pastora desenvolvido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).

57Quanto aos projetos desenvolvidos por designers, ressaltam a necessidade de um maior diálogo e efetiva coparticipação. Entre os participantes do encontro de 2012, houve consenso em afirmar que os projetos mais bem-sucedidos, de seus respectivos pontos de vista, foram aqueles em que os produtos foram desenvolvidos em conjunto. As propostas que chegavam com um desenho já pronto acabavam por gerar um engessamento do potencial criativo, segundo eles, vendo-se coagidos a produzir por longo tempo um único formato. Nizete, artífice de Barreirinhas/MA, por exemplo, destacou ser fundamental que o designer visite a comunidade, sobretudo para conhecer o ambiente e como aproveitar a matéria-prima da região para as coleções (Alves, 2013).

58Nesse âmbito, outro ponto levantado se refere às pressões e dificuldades de relacionar o tempo da produção artesanal e o tempo do mercado. Destacaram a importância da construção de uma consciência em relação ao limite do potencial produtivo. As associações de artesãs de Taubaté e Saubara, por exemplo, afirmam que, por vezes, são obrigadas a recusar encomendas, posto que cada objeto segue um limite de produção de acordo com sazonalidades climáticas para obtenção de matéria-prima, rituais de acordo com um determinado calendário do ano, e mesmo o tempo necessário para dar forma à criação.

59Outro aspecto a sublinhar é o fato de que a SAP se tornou também um programa apropriado pelo mercado de arte, na medida em que colecionadores e galeristas se utilizam do discurso sobre cultura difundido pela SAP para valorizar seus discursos nos mundos de arte. Exemplo disso é o episódio ocorrido às vésperas da inauguração de uma exposição em que um comprador ligado ao mercado de arte propôs comprar, de maneira exclusiva, a exposição inteira do artista em pauta. Naquela altura, já havia um investimento de galeristas locais para impulsionar o nome do artista em questão e aquela era a primeira vez em que ele expunha fora de sua terra natal, em uma instituição considerada relevante por estes atores sociais. Os objetos apresentados naquela exposição tinham, portanto, um valor especial no mercado de arte.

Estado, estados e políticas de cultura

60Um último tema a comentar refere-se às dificuldades enfrentadas por museus e instituições de cultura no Brasil na execução de políticas públicas voltadas aos segmentos populares. Trata-se de um permanente e, não raro frustrante, desafio de ter de trabalhar com um regime burocrático duro e atravancado quando aplicado para a realidade de pessoas que, muitas vezes, estão à margem de princípios básicos de cidadania. É a tensão permanente entre tentar flexibilizar a burocracia do Estado (e este é um esforço quase sempre inútil) e tentar fazer com que essas pessoas percebam de que modo o Estado funciona. De modo amplo, é correto afirmar que a estrutura burocrática do Estado brasileiro não dialoga com a realidade dessas populações.

61No caso da SAP, são recorrentes os obstáculos para conseguir transportar objetos, como nos casos de pessoas que vivem em locais cujo acesso é feito somente por barco, por exemplo. Os prazos de liberação orçamentária, cada vez mais irregulares e com progressivos cortes, são outro problema que atravanca o planejamento do programa. A tentativa de realizar um trabalho com as ceramistas de Maruanum, no Amapá, é exemplar: o fato de a produção estar condicionada ao tempo específico para a retirada da argila somado às dificuldades de acesso e transporte tem tornado, até o momento, inviável a sua concretização, pois seguem prazos que não coincidem com o tempo da execução orçamentária do Estado. Por outro lado, os próprios artífices argumentam que, por vezes, não conseguem o apoio do Estado por desconhecerem os procedimentos legais para obtê-los. Do mesmo modo, relatam a dificuldade quanto ao domínio da linguagem técnica para elaboração de projetos. No primeiro Encontro de Artesãos, por exemplo, uma das demandas apresentadas ao CNFCP foi exatamente a de maior apoio para mediação e acesso a informações, e sobre noções de como proceder nesses trâmites (Ribeiro, 2007).

62Ao comentar sobre os impactos das políticas de patrimonialização recentes, a antropóloga Regina Abreu14 indica, por exemplo, o quanto elas demandam também uma espécie de alfabetização na matéria pelos grupos que realizavam suas práticas e as classificavam por outros termos, fora da lógica patrimonial. Talvez seja correto afirmar que todas as políticas culturais demandam algum tipo de alfabetização por parte dos detentores para dialogar com o Estado, algo que seria normal, considerando a perspectiva do diálogo. O problema é a relação sempre desigual, em que os grupos têm de se adequar ao Estado para serem agraciados por tais políticas.

63Um elemento a se destacar diz respeito a uma autorreflexão: afinal, qual o papel do antropólogo nos processos de construção de políticas públicas no Brasil? Atualmente, um dos pontos fortes de discussão sobre o tema refere-se à inserção deste profissional em meio aos processos de inventários e registros de patrimônios imateriais. De que maneira agir neste terreno? Que princípios éticos, teóricos e metodológicos demandam? Essas são questões sempre mencionadas e cuja reflexão segue em construção.

64Cabe sublinhar, no entanto, que, se o papel do Estado deve ser o de promover formas horizontalizadas e realmente representativas na promoção e difusão de culturas, cabe aos pesquisadores ir além da reflexão teórica e atuar nas diferentes etapas da construção de tais políticas (Fonseca et al., 2017). Os próprios artesãos nos lembram, por sua vez, que para além do Estado e uma série de mediadores, é fundamental para eles a articulação de redes de agentes em vários âmbitos. A ceramista Maria Antônia dos Santos, de Coqueiros/BA, aponta, por exemplo, a importância de um bom diálogo com os fornecedores do barro, pois são eles que acabam por decidir a quem vender o melhor material e condições mais ou menos facilitadas de pagamento, até instituições em âmbito federal para facilitar o seu escoamento e valorização do produto (Arruda, 2012).

Notas finais

65Ao longo das mais de três décadas de existência da SAP, é notório observar mudanças no chamado campo das artes populares. É crescente o número de agentes de naturezas diversas que começaram a intervir de maneira mais ou menos incisiva no campo a partir dos anos 1990 e, sobretudo, depois de 2000. Apropriações diversas vão surgindo: no campo do design, tentando suscitar um diálogo erudito/popular; de políticas voltadas para o artesanato; de projetos de patrimonialização; da inserção nos circuitos e galerias de arte contemporânea.

66Parece que vivemos uma espécie de redescoberta do popular, cujos contornos vão dos mais pragmáticos a uma espécie de romantismo contemporâneo associado a questões como turismo e bens de consumo, que beiram em alguns casos a tão criticada folclorização dos meados dos anos 1950. Isso vai ao encontro das obsessões por passados, memórias, patrimônios, museus, tão comentadas e fomentadas atualmente.

67Ainda assim, a visibilidade e o reconhecimento das pessoas que produzem tais objetos e saberes parecem estar um passo atrás. Ainda hoje é preciso avançar um pouco (ou talvez muito) mais. De modo geral, há um clamor por iniciativas que de fato levem a sério a ideia de participação conjunta. Isso leva a repensar os próprios limites da SAP e a participação que proporciona. Em que pode avançar no sentido de atender as demandas dos artífices no atual contexto de esvaziamento das instituições estatais de cultura? É nesse sentido que o programa se mantém atual e útil ferramenta de trabalho na promoção de um campo de saber, buscando dar ênfase ao indivíduo enquanto autor e criador, mesmo em um contexto desfavorável das políticas de Estado dos últimos anos.

68Se na década de 1980 tratava-se de um trabalho para tornar visíveis objetos e pessoas que circulavam à margem de um moderno “sistema de arte e cultura” – para usar o conceito de James Clifford (1994) –, hoje trata-se, muitas vezes, de fazer com que as pessoas que produzem estes objetos tomem conhecimento do mundo pelo qual eles circulam. As coisas deslocaram-se primeiro e de maneira mais acelerada em direção ao moderno ocidental sistema de arte e cultura. Estão nas feiras, galerias, exposições, projetos de decoração, etc. No entanto, boa parte de seus autores ainda está na penumbra. Eles, por sua vez, ainda veem com estranhamento ou desconhecem por completo os mecanismos e o funcionamento da circulação de seus objetos.

69Há, claro, casos em que a projeção do nome do artista já é uma realidade. Véio [Cícero Alves dos Santos] talvez seja um exemplo dos mais fortes atualmente, para não citar o legado de Vitalino. Tentar manter-se como uma ferramenta direta de diálogo entre artista e um público talvez seja, ainda, um diferencial deste programa e algo que justifique sua vitalidade.

70Por fim, quando se fala em arte popular, cultura popular, paira sempre a questão: qual o sentido de usar estes termos? O antropólogo João Leal (2009) afirma que a construção do popular é o resultado do encontro entre aquele que lá estava e não se pensava como popular e alguém que chega e o nomeia como popular. Mas, afinal, a categoria tem de ter algum sentido. No caso do Programa Sala do Artista Popular, o uso destes termos segue sendo útil, mais do que do ponto de vista teórico, do ponto de vista político, pela necessidade ainda atual de demarcar espaço de um tipo de produção cultural que permanece à margem, apesar dos inúmeros avanços conquistados. O popular, na falta de algo mais adequado, vem ao longo dos anos se requalificando (do folclore ao patrimônio imaterial; do artesanato ao circuito da arte contemporânea). Isso não esvazia a possibilidade de criticar e, do mesmo modo, indagar sobre até quando será útil, ou que novas metamorfoses estarão por vir.


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