Na sua opinião como derrubar essa barreira de preconceitos em relação aos indígenas brasileiros

Durante uma apresentação para a celebração da Semana do Índio na escola de seu filho, no Rio de Janeiro, o sociólogo José Carlos Matos Pereira mostrou uma foto e perguntou: "O que vocês acham, são indígenas?". As crianças responderam imediatamente em uníssono: "Nãããão". Ele perguntou o porquê, e elas responderam: "Não estão pelados, não estão com arco e flecha e não estão na floresta, então não são indígenas".

O episódio, baseado em uma foto de indígenas do município de Altamira, no Pará, é apenas um relato da realidade enfrentada pelos indígenas que vivem em áreas urbanas no país.

"Isso marca uma percepção desde criança de como se pensa o indígena", diz Pereira, pesquisador do Programa de Memória dos Movimentos Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). "O indígena caça, pesca, vive na floresta, tem seu modo de vida, seus rituais. Mas também ele vem para a cidade."

Cidades brasileiras com maior proporção de indígenas Imagem: Mongabay

Mais de um terço da população indígena do Brasil, ou 315 mil indivíduos, vive em áreas urbanas, de acordo com o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizado no ano de 2010 (novos dados só estarão disponíveis em 2022).

Enquanto nas zonas rurais e áreas remotas da Amazônia os povos indígenas são ameaçados por invasões de terras, mineração e projetos de infraestrutura, nas cidades eles enfrentam invisibilização e preconceito.

Michael Oliveira Baré Tikuna na praia de Copacabana Imagem: Mongabay

Michael Oliveira Baré Tikuna mora no Rio há 20 anos e relata inúmeras situações em que enfrentou preconceito por ser indígena. "Um rapaz negro falou para mim que meu lugar não era ali na universidade, que meu lugar era lá dentro da floresta", disse Baré, shiatsu terapeuta e professor autônomo de história indígena.

"Esse foi a coisa que mais me chocou porque ele estava reproduzindo em mim o que os brancos fazem com ele, que é para mandá-lo de volta para a África."

Nascido em Manaus, Baré foi o primeiro indígena a ingressar na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) pelo sistema de quotas. Seu nome indígena na língua Nheengatu — derivada do Tupi-Guarani — é Anaje Sucurijú Mangará Ibytyra, que significa Gavião Sucurijú Coração de Montanha.

Seu nome em sua certidão de nascimento é Michael Júnior Queiroz de Oliveira, mas ele adotou as etnias indígenas Baré e Tikuna de seus pais após resgatar suas raízes indígenas. "Na universidade nós somos invisibilizados, nos movimentos sociais nós somos invisibilizados, em tudo nós somos invisibilizados."

A historiadora Ana Paula da Silva, doutora em memória social, destaca a importância de um movimento revisionista da história indígena que diversos pesquisadores realizam hoje para dar um lugar de destaque aos povos originários na história brasileira.

Eles são parte da nossa história, da nossa cultura e foram fundamentais no processo de colonização e isso é algo que deve ser ensinado nas escolas, divulgado na mídia e, com certeza, a partir do momento que a sociedade brasileira entender que os indígenas são parte do Brasil, da nossa história, com certeza muitos preconceitos, muita discriminação com relação a essa população, será desconstruída."
Ana Paula da Silva, pesquisadora do Programa de Estudos dos Povos Indígenas (Pro Índio) da UERJ

Cidades brasileira com o maior número de indígenas Imagem: Mongabay

Histórias como a de Baré serão contadas em uma série de reportagens multimídia que a Mongabay começa a publicar hoje, com foco nos seis municípios brasileiros com o maior número absoluto de indígenas em áreas urbanas: São Paulo (SP), São Gabriel da Cachoeira (AM), Salvador (BA), Rio de Janeiro (RJ), Boa Vista (RR) e Brasília (DF).

Para Brasília, o IBGE considera os dados do Distrito Federal. O projeto, que recebeu financiamento do Pulitzer Center on Crisis Reporting, produziu mapas e infográficos inéditos que mostram não só onde moram os indígenas nessas cidades, mas também seu acesso à educação, esgoto e outros serviços, além de sua diversidade étnica.

Pereira, que tem pós-doutorado em antropologia social, destaca a importância do censo de 2010, pois é o primeiro a reconhecer, por meio de um processo de autodeclaração, a presença indígena em terras indígenas, áreas rurais e urbanas, bem como suas 300 etnias e idiomas.

Durante muito tempo, os indígenas foram apagados da contagem populacional. Só vão aparecer nos anos noventa através do quesito cor e raça... Em 2010 nós vamos ter o primeiro Censo Indígena do Brasil. Então é um dado importante que não dá mais pra negar: a presença indígena em cidades brasileiras."
José Carlos Matos Pereira, pesquisador do Programa de Memória dos Movimentos Sociais da UFRJ

Michael Oliveira Baré Tikuna posa para foto em frente a um prédio da UERJ Imagem: Mongabay

Um dos destaques da série é o acesso ao ensino superior. Entre 2010 e 2019, o número de indígenas nas universidades saltou de 10 mil para cerca de 81 mil, segundo o censo do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).

"Desse grupo é que vão sair os cérebros do movimento", comenta o antropólogo João Pacheco de Oliveira, professor titular e curador das coleções etnográficas do Museu Nacional.

Os que vão para a cidade não viram brancos... Eles continuam a ser indígenas e vão ser importantíssimos para aqueles que estão dentro das aldeias."
João Pacheco de Oliveira, curador do Museu Nacional

Os indígenas reivindicam seus direitos ancestrais deste edifício, localizado ao lado do Maracanã Imagem: Mongabay

Para Baré, entrar na UERJ pelo sistema de cotas foi a maior conquista de sua vida. "A educação, além de ser uma arma, um escudo para me defender dos preconceitos e do racismo, ela também é a única arma que a gente pode usar, nós indígenas, que não vai gerar reação genocida".

Ele afirma que seu maior sonho é libertar o povo brasileiro do discurso ideológico colonizador de escravista, que mantém os índios subjugados: "No momento em que os brasileiros, em vez de falar 'Ah, são os índios'", eles falem: 'são os nossos ancestrais'".

*Este projeto recebeu financiamento do programa de jornalismo de dados e direitos fundiários do Pulitzer Center on Crisis Reporting. Leia a íntegra da reportagem originalmente publicada no site da Mongabay.

  • Vinicius Lemos
  • Da BBC News Brasil em São Paulo

Na sua opinião como derrubar essa barreira de preconceitos em relação aos indígenas brasileiros

Crédito, Arquivo pessoal

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Indígenas xavantes fazem barreira sanitária em aldeia de General Carneiro (MT). Na cidade, eles são os mais afetados pelo novo coronavírus.

Áudios e mensagens de texto com ataques a indígenas do município de General Carneiro, no interior de Mato Grosso, se tornaram alvos do Ministério Público Federal (MPF). Os comentários ofensivos foram compartilhados nas últimas semanas em um grupo de WhatsApp destinado aos moradores da cidade.

Nos áudios e nas mensagens de texto, os indígenas são apontados por alguns moradores como os principais responsáveis por propagar a covid-19 no município mato-grossense.

Os comentários ofensivos começaram, principalmente, após os moradores notarem que a maioria dos casos de covid-19 na cidade, até o momento, tinham sido registrados nas aldeias da região.

"Ô, companheiro, isso daí só é índio, rapaz... não é gente, não (...). Dentro de General mesmo, o número de infectados é muito pouquinho, graças a Deus. Agora os índios... esse povo aí é sem cultura, sem religião, quem dá conta desse povo aí?", disse um homem em um dos áudios compartilhados no grupo.

A cidade mato-grossense tem 5,5 mil habitantes, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Parte da população é composta por indígenas pertencentes aos povos bororo e xavante.

Dados atuais da covid-19 no município apontam que General Carneiro registrou 160 casos de covid-19, sendo 117 deles em indígenas. Na cidade, sete pessoas morreram em decorrência do novo coronavírus, seis delas eram indígenas — três da etnia xavante e três da bororo.

As mensagens no grupo da cidade no WhatsApp causaram apreensão em indígenas, que passaram a temer que as acusações contra eles motivassem ataques às aldeias. Em razão disso, encaminharam o caso ao MPF e irão levá-lo para a Fundação Nacional dos Índios (Funai).

Crédito, Reprodução/WhatsApp

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Em grupo de WhatsApp, áudios e mensagens de texto causaram indignação em indígenas e foram parar no MPF

No grupo, intitulado "General Notícias Regiões", alguns moradores utilizaram termos ofensivos ao se referir aos indígenas. "Palhaçada esse tanto de casos positivos (de covid-19) em General. Estou vendo que essa 'porra' desse lugar vai fechar por causa desses índios (...). Não estou aguentando esses capetas desses índios na porta de casa pedindo comida 24 horas", disse uma moradora do município.

A mulher ainda defendeu, no áudio, que os indígenas sejam "trancados" nas aldeias para que não tenham contato com os demais moradores da cidade.

Em outro áudio, um homem chamou os indígenas da região de "bichos" e disse que eles precisam ser isolados, para proteger os outros moradores. "Tem que fechar as aldeias, né? Chegar lá, colocar a polícia lá e travar tudo. Teriam que fechar as aldeias para esses 'bichos'", afirmou.

Essas foram algumas das ofensas propagadas no grupo. A reportagem apurou que foram, ao menos, cinco áudios ofensivos nas últimas semanas, além de diversas mensagens de texto.

As ofensas preocuparam os indígenas da cidade. Os bororo, que vivem na Terra Meruri, consideraram as declarações como "violência moral, psíquica, ética e cultural" e afirmaram que a situação representa um caso de "preconceito, injúria racial e racismo".

Eles classificaram os áudios como "extremamente preocupantes e com teor criminoso, inadmissível em nossa sociedade e no regime jurídico brasileiro". Em documento assinado por lideranças da região, relatam que os ataques ocorrem desde junho, "por conta do perambulo e permanência na cidade, onde os moradores estão atribuindo a disseminação da pandemia ao trânsito de indígenas".

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Na Terra Sangradouro, do povo xavante, indígenas afirmam que há mais de 100 casos de covid-19 apenas na área de General Carneiro

No documento, os indígenas afirmam que temem que os áudios culminem em agressões físicas contra o povo, "tendo em vista a quantidade de casos de violências graves a indígenas registrados no país".

Ainda no documento, eles argumentam que a Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas destaca que deve haver respeito à liberdade e igualdade a todos.

O documento, que será encaminhado à Funai e ao MPF, pede que as mensagens compartilhadas no grupo de WhatsApp sejam investigadas e que os responsáveis pelas declarações sejam responsabilizados na Justiça.

Os bororo pedem também que sejam feitas ações de conscientização na cidade sobre a questão indígena, para combater o preconceito e o racismo.

"Com o avanço da tecnologia e dos meios de transporte, nós, povos indígenas, temos participado mais da rotina das cidades e no município de General Carneiro. Temos fortalecido o comércio local, somos ativos na economia e também devemos ser valorizados (...). Não buscamos atrito com os moradores, mas sim que os indivíduos envolvidos sejam julgados de acordo com a lei e que daqui pra frente possamos construir uma nova história", conclui o documento.

Um dos representantes dos bororo, o indígena Liberio Uiagumeareu, afirma que as declarações não podem ficar impunes. "A princípio, quando escutamos um áudio, ignoramos. Mas depois vimos que essa situação aumentou muito e outras pessoas falavam coisas parecidas. São falas preocupantes. Há muitas acusações falsas", diz ele, que é formado em Direito e atualmente vive com a família em Cuiabá (MT).

Também do povo bororo, Kleiton Rodrigues ressalta que as críticas e o preconceito contra indígenas na região são uma situação histórica. "Mas, ainda bem, não são todos que têm essa visão de ódio contra a gente", diz o indígena, que vive na terra Meruri, em General Carneiro.

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Terra Meruri, em General Carneiro, onde foram registrados diversos casos de covid-19 nas últimas semanas

Somente na Meruri já foram confirmados mais de 100 casos de covid-19. "A transmissão foi muito rápida", diz Kleiton. Ele não testou positivo para a covid-19 em um exame, mas acredita ter sido infectado pelo coronavírus, pois a esposa e os filhos, que moram com ele, foram diagnosticados com a doença.

"O Brasil todo estava despreparado para essa doença. O nosso povo está desassistido pelo governo", acrescenta Kleiton, que é presidente do Conselho de Saúde Indígena da aldeia.

Há cerca de 1,7 mil habitantes no território bororo, divididos em cinco municípios mato-grossenses. Em General Carneiro, vivem, aproximadamente, 600 deles.

Os comentários no grupo de WhatsApp também incomodaram os xavante. A etnia tem visto a covid-19 se espalhar na terra Sangradouro, que abriga cerca de 1,2 mil habitantes somente na área pertencente a General Carneiro. Ali, os indígenas contabilizam mais de 100 casos.

"Essas ofensas aos indígenas existem há muito tempo. Atualmente, as pessoas têm se sentido mais protegidas pelo governo do Jair Bolsonaro, que não respeita os povos indígenas", declara Hiparidi Toptiro, xavante de Sangradouro e coordenador-geral do movimento Mobilização dos Povos Indígenas do Cerrado.

Os xavante são a etnia mais populosa de Mato Grosso e a quarta do país, com cerca de 23 mil indivíduos espalhados por nove terras indígenas, em mais de 320 aldeias — há centenas de casos do novo coronavírus em diferentes aldeias xavante.

Hiparidi afirma que discursos como os dos moradores de General Carneiro fortalecem ações contra indígenas e gera temor. "Isso favorece, por exemplo, ações daqueles que querem invadir e explorar as nossas terras, que se sentem mais fortes", declara.

Os áudios e mensagens de texto do grupo de WhatsApp foram encaminhados ao MPF por representantes indígenas da região.

O MPF de Mato Grosso instaurou uma notícia de fato — medida inicial para colher informações sobre um caso — para apurar as mensagens. Posteriormente, se o procurador considerar necessário, pode converter o procedimento em inquérito. Depois, o caso pode se tornar um processo judicial.

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Representante do povo bororo, Kleiton Rodrigues acredita ter contraído a covid-19, após a esposa e os filhos testarem positivo para a doença

As mensagens no grupo foram classificadas pelo MPF de Mato Grosso como "manifestações de discriminação, de ódio e de ameaça". Em nota, o Ministério Público Federal ressalta que os povos indígenas são "grupos culturalmente diferenciados", que "não devem sofrer restrições de direitos". A entidade frisa que a Constituição Federal busca a "igualdade material e a efetiva proteção dos direitos" desses povos.

O comunicado do MPF-MT ressalta que crimes de preconceito de raça e cor podem culminar em reclusão de dois a cinco anos "para quem praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, por intermédio de publicação de qualquer natureza".

O fato será apurado pelo procurador Everton Pereira Aguiar Araújo, de Barra do Garças (MT). Segundo o MPF-MT, os envolvidos poderão sofrer "responsabilização civil e criminal".

Um dos responsáveis pelos áudios contra os indígenas, um comerciante de 60 anos, que pediu para não ter a identidade divulgada, afirma estar muito arrependido dos comentários que fez. "Levaram minha declaração para outro lado. Não falei com malícia nenhuma. Fiquei muito chateado", diz à BBC News Brasil.

No áudio, o comerciante se referiu aos indígenas como "bichos", mas nega que tenha sido uma expressão preconceituosa. "Tenho uma mania besta de falar assim: 'fala, bicho' ou 'e aí, bicho'. Naquela hora falei bicho, mas eles são iguais a nós. Foi uma palavra errada", justifica.

"Me arrependo. Se soubesse que iria virar isso... Pedi desculpas (a líderes indígenas). Foi um erro meu. Foi um momento de burrice. Se fosse para ajoelhar para pedir perdão, eu faria. Mas agora não adianta, já está no Ministério Público e vou ter que arcar com as consequências", acrescenta o comerciante de General Carneiro.

Apesar de negar que tivesse a intenção de ofender, o homem justifica a crítica aos indígenas por um conflito familiar do passado. "O meu pai perdeu uma área de terra (em General Carneiro) para os indígenas em 1976. Era uma área 1,2 mil hectares, que hoje pertence a uma aldeia", diz. Ele afirma que não sabe, porém, detalhes sobre a decisão judicial que obrigou seu pai a deixar a propriedade.

Também entre os responsáveis pelos comentários contra os indígenas está o advogado Fabio Dias, que há mais de 16 anos se mudou de General Carneiro para a capital mato-grossense. No grupo, ele disse que "não é chegado a índio". Em nota à BBC News Brasil, ele afirma que se expressou mal. "O que queria dizer, na verdade, é que não sou chegado às causas indígenas, visto que no grupo havia uma campanha para arrecadação de itens de higiene em favor dos povos indígenas, da qual não participei", argumenta.

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Imagem compartilhada por academia de Dourados (MS) na qual indígenas foram alvos de críticas e caso foi parar no Ministério Público Federal. (Imagem cortada para preservar as identidades da mulher e das crianças)

"Em relação ao meu ponto de vista, tenho que todos nós, independente de raça, cor, nação, cultura, religião e outras peculiaridades individuais e coletivas, somos todos iguais, e temos direitos a diferenças, e o dever ético/social de respeitá-las", completa o advogado, de 40 anos.

A reportagem tentou contato com outras pessoas que também fizeram comentários contra os indígenas no grupo de WhatsApp, porém não obteve respostas.

Antropólogo e professor da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), Diógenes Cariaga pontua que o preconceito contra os indígenas é uma situação que perdura há séculos. "Há questões que reforçam a discriminação e o discurso de ódio contra os indígenas, como os problemas fundiários e a disputa política em relação à identificação e demarcação das terras."

Para ele, a pandemia reforçou esse preconceito. "Uma situação como a que vivemos atualmente reacende esse discurso. Ao longo do século, criaram a imagem do indígena como alguém que não trabalha, que é preguiçoso e bêbado. Essa argumentação é recorrente em discursos regionais e é alimentada por uma estrutura tensa de problemas fundiários, como se todos os indígenas fossem assim", diz.

"No Brasil, a pandemia veio pelas pessoas de classe média alta, que viajaram para fora, até chegar aos indígenas. Em Dourados (MS), por exemplo, um dos primeiros casos em aldeias foi o de uma indígena que trabalhava em um frigorífico", relata o especialista. Ele avalia que há uma "construção histórica de preconceito contra os indígenas" que faz com que muitas pessoas associem a disseminação do coronavírus a esses povos.

Ele cita uma situação que ocorreu semanas atrás em Dourados, segunda maior cidade de Mato Grosso do Sul, como exemplo do preconceito sofrido por indígenas no contexto da pandemia do novo coronavírus. Uma academia do município publicou, em seu perfil no Instagram, uma imagem de uma indígena, que estava com duas crianças, andando sem máscara em uma rua da cidade.

"As academias são lugares de proliferação de covid e precisam estar fechadas para que as pessoas fiquem com suas imunidades bem baixas. Porém, essas pessoas (indígenas) podem andar sem máscara e, se não me engano, a aldeia estava cheia de covid. Acordaaa, Dourados!", escreveu um dos responsáveis pela academia — que está fechada em razão da quarentena, para evitar a propagação do coronavírus.

Dourados, que tem cerca de 210 mil habitantes, já registrou mais de 4 mil casos de covid-19. Desses, 200 ocorreram em terras indígenas.

A publicação da academia, apagada minutos depois, causou indignação. Muitos internautas apontaram que se tratou de caso de racismo ao expor os indígenas e apontá-los como responsáveis pela propagação da covid-19 na cidade. "Esse tipo de discriminação tem sido recorrente", diz Diógenes.

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Enquanto casos avançam entre indígenas, cresce também o preconceito e o discurso de ódio contra eles, alerta antropólogo

"O que me parece é que setores que sempre foram contrários às questões indígenas passaram a manipular o discurso para tornar os indígenas responsáveis pela pandemia. Eles (os indígenas) são os mais vulneráveis a tudo isso e estão sendo duramente impactados. Mas existe uma construção de narrativa para manipular o discurso e colocá-los como culpados", afirma o antropólogo.

O Ministério Público Federal de Mato Grosso do Sul instaurou, em 16 de julho, um Procedimento Investigatório Criminal (PIC) — que tem início após as primeiras apurações do órgão. Os responsáveis pela academia negam que a publicação tenha sido racista e alegam que o texto teve interpretação diferente da que queriam passar.

O MPF informa que analisa o caso para avaliar se será encerrado ou se poderá culminar em um processo judicial. Responsável pelo procedimento, o procurador do MPF de Dourados, Marco Antônio Delfino de Almeida, afirma à BBC News Brasil que consultará a comunidade indígena sobre o caso. "Obviamente, o sentimento da comunidade terá repercussão para avaliarmos as medidas a serem empreendidas", declara

Enquanto aumenta o discurso de ódio, cresce também a precariedade da condição de vida nas aldeias. Os indígenas são considerados especialmente vulneráveis à covid-19 por alguns fatores como o compartilhamento de objetos, a frágil assistência médica em seus territórios e a grande quantidade de pessoas morando em áreas muito próximas.

Situações como a de General Carneiro ilustram a vulnerabilidade dos indígenas em relação à covid-19. "O meu povo está doente e assustado com tudo isso. A nossa terra é também um território vulnerável porque a BR-070 passa por aqui e muitos automóveis transitam diariamente em nosso entorno. Além disso, os produtores de grãos estão nos pressionando para arrendar nossas terras", diz Hiparidi.

Um dos representantes dos xavante de General Carneiro, Hiparidi contraiu a covid-19 recentemente e passou dias internado. "A situação por aqui não está fácil. Os números são muito maiores do que pensamos. E, além disso, ainda há o ódio das pessoas contra a gente", lamenta.

Os representantes dos xavante e dos bororo relatam que foram colocadas barreiras sanitárias nas entradas das aldeias para controlar o fluxo dos moradores. Eles pontuam que o fluxo de indígenas na cidade caiu, porém, muitos deles precisam ir a regiões centrais do município por questões básicas, como comprar mantimentos.

Hiparidi afirma que o discurso de ódio contra os indígenas tem se tornado cada vez mais comum e forte, em razão da conduta do presidente Jair Bolsonaro em relação ao tema.

O líder indígena classifica a postura do presidente Jair Bolsonaro como genocida, pois aponta que não deu o suporte necessário para evitar que o novo coronavírus se espalhasse nas aldeias. No início de julho, o Supremo Tribunal Federal determinou que o Estado tomasse providências para auxiliar a população indígena no combate ao vírus.

"Em todo o Brasil há indígenas morrendo. Está claro o descaso do governo federal com a gente. Tenho certeza de que é uma ação proposital do Bolsonaro contra os indígenas", declara Hiparidi.

No país, segundo a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), já foram registrados mais de 14 mil casos de covid-19 entre indígenas e mais de 260 mortes. Organizações que defendem os povos, porém, afirmam que o número é muito maior e que há milhares de casos que não foram contabilizados oficialmente.

Em General Carneiro, por exemplo, os representantes dos bororo e xavante acreditam que há mais de 200 casos de covid-19, mas apenas a metade desse número consta em dados oficiais. A Prefeitura da cidade justifica que os casos são registrados conforme os testes dão resultado positivo.

Em nota, a prefeitura de General Carneiro classifica como "fato isolado" a situação da cidade, na qual a maioria dos casos de covid-19 ocorre entre os indígenas. No comunicado, a prefeitura afirma que repudia qualquer tipo de discriminação, "em especial aos povos indígenas", e diz que tem executado diversas atividades junto com representantes das aldeias para conter o avanço do coronavírus.

A Sesai diz, em nota encaminhada à BBC News Brasil, que tem atuado no enfrentamento à covid-19 em aldeias de todo o país, por meio de Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena (EMSI).

Já a Fundação Nacional do Índio (Funai) afirma, também em nota à BBC News Brasil, que já investiu, aproximadamente, R$ 24 milhões em ações de combate à covid-19. A entidade argumenta que tem feito diferentes ações, como a criação de barreiras sanitárias para impedir a entrada de não indígenas nos territórios e a distribuição de alimentos para "garantir a segurança alimentar dos indígenas, medida que colabora para que eles permaneçam nas aldeias".

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