Em qual região os portugueses concentram a maior parte de suas viagens marítimas no século xv

Grandes Navegações é o nome que se deu para as expedições de exploração do oceano que aconteceram a partir do século XV. Portugal foi o país que se lançou pioneiramente nessa empreitada, e a conquista de Ceuta, em 1415, é considerada o início das navegações portuguesas. No caso espanhol, o grande feito foi a expedição que chegou à América, em 1492.

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Quem liderou as Grandes Navegações?

Em qual região os portugueses concentram a maior parte de suas viagens marítimas no século xv
A caravela foi uma das grandes inovações que contribuíram para o sucesso das Grandes Navegações.

As Grandes Navegações iniciaram-se no século XV e estenderam-se ao longo do século seguinte, com progressiva exploração do oceano. Essas navegações marítimas só foram possíveis porque, no século XV, havia um acúmulo de conhecimento náutico e novas tecnologias haviam aprimorado o ofício da navegação.

Portugal é considerado o país pioneiro nessa exploração do oceano Atlântico por uma série de fatores que envolvem economia, política, geografia e até mesmo a própria sociedade portuguesa. Isso possibilitou que Portugal explorasse o Atlântico, descobrindo novas rotas e estabelecendo novas relações comerciais.

Primeiramente, Portugal tinha estabilidade política desde o final do século XIV. Isso foi resultado da Revolução de Avis, um conflito que aconteceu entre 1383 e 1385 e que foi responsável pela ascensão da dinastia de Avis ao trono português. Esse acontecimento conseguiu estabilizar a política portuguesa, permitindo que o país incentivasse o seu desenvolvimento econômico.

Outro fator importante era que Portugal tinha seu território já consolidado, isto é, não estava em litígios territoriais, como era o caso da Espanha, que, ainda no século XV, travava conflitos com os mouros no sul da Península Ibérica. A consolidação do território português remonta ao século XIII, quando os mouros foram derrotados na região do Algarve.

Economicamente, Portugal era um importante centro que recebia comerciantes de diversas partes da Europa. A cidade de Lisboa, inclusive, era o grande centro de comércio de Portugal, principalmente porque comerciantes genoveses tinham investido para que o comércio lisboeta se desenvolvesse. Com as explorações, a economia portuguesa buscava obter, principalmente, especiarias e ouro.

Na questão geográfica, podemos mencionar que todo o litoral português era voltado para o oceano Atlântico e a posição geográfica do país colocava-o próximo de correntes marítimas importantes, tornando a navegação mais fácil. Por fim, na questão social, a exploração atlântica era incentivada por todo o país e era entendida como oportunidade de prosperar financeiramente por diferentes camadas daquela sociedade.

Em qual região os portugueses concentram a maior parte de suas viagens marítimas no século xv
Em 1500, a expedição de Pedro Álvares Cabral chegou ao Brasil para investigar as possibilidades que os portugueses teriam na América.[1]

Considera-se que o as grandes navegações portuguesas foram iniciadas em 1415, quando os portugueses, durante o reinado de d. João I, conquistaram Ceuta, no norte do continente africano. A conquista de Ceuta era parte dos interesses portugueses, que queriam alcançar o ouro árabe e também manter contato com o reino mítico de Preste João, a fim de guerrear contra os muçulmanos.

Depois de Ceuta, uma série de outras expedições oceânicas foram realizadas, e a prioridade portuguesa foi a de explorar a costa do continente africano. Isso porque os portugueses desejavam encontrar, por meio da costa africana, uma rota que os permitisse alcançar as Índias. Esse desejo foi reforçado em 1453, quando Constantinopla foi conquistada pelos otomanos e o acesso às especiarias ficou limitado.

As especiarias eram mercadorias importantes na Europa porque ajudavam na conservação dos alimentos e melhoravam o gosto, sobretudo, das carnes. Também eram utilizadas na elaboração de cosméticos e na produção de medicamentos e eram uma mercadoria de altíssima lucratividade.

Durante as expedições que exploravam a costa africana, os portugueses chegaram a locais onde nunca haviam estado. Em 1420, chegaram a Madeira; em 1427, a Açores; em 1460, às ilhas de Cabo Verde; e, em 1471, chegaram a São Tomé. No entanto, não apenas de “descobertas” de locais foram feitas as Grandes Navegações.

Em 1434, um marco importante aconteceu: o contorno do Cabo do Bojador. Esse cabo fica atualmente próximo do litoral da Saara Ocidental e é marcado por uma série de corais pontiagudos e por bancos de areia e locais de baixa profundidade. O lugar era alvo de muitas lendas justamente porque muitos navios desapareciam nele ou simplesmente não conseguiam atravessá-lo.

Muitos portugueses acreditavam que o Cabo do Bojador era um dos limites do mundo e, por isso, era impossível ultrapassá-lo, mas o navegante Gil Eanes conseguiu tal feito. Poucos anos depois, os portugueses começaram a usar uma embarcação que se tornou mais apropriada para a navegação marítima: a caravela. A caravela era mais eficiente em situações em que o vento soprava contra e foi a principal embarcação portuguesa até o século XVII.

Em qual região os portugueses concentram a maior parte de suas viagens marítimas no século xv
Superar o Cabo da Boa Esperança, em 1488, permitiu com que Portugal estabelecesse uma rota marítima até as Índias.[2]

Durante o reinado de d. João II, um novo feito importante aconteceu: o Cabo da Boa Esperança, no sul da África, foi superado pelo navegante Bartolomeu Dias, em 1488. Essa expedição permitiu que as embarcações portuguesas conseguissem superar as águas agitadas desse cabo e deu possibilidade para que uma rota entre Portugal e as Índias fosse estabelecida.

O feito de Bartolomeu Dias permitiu que o navegante Vasco da Gama descobrisse um caminho por mar que ligava Portugal às Índias. A viagem de Vasco da Gama foi realizada entre 1497 e 1498, portanto, durante o reinado de d. Manuel I. Outro grande feito português foi montar a expedição que chegou ao Brasil em 1500. Essa foi a expedição de Pedro Álvares Cabral, que chegou aqui em 22 de abril de 1500. Caso queira saber mais sobre esse momento de pioneirismo português, leia: Expansão marítima portuguesa.

Não somente os portugueses realizaram grandes feitos durante as Grandes Navegações. É creditado aos espanhóis o feito de terem organizado a expedição que trouxe os europeus ao continente americano pela primeira vez, desde que exploradores vikings estiveram na América do Norte, entre os séculos X e XI.

Durante grande parte do século XV, a Espanha enfrentava questões que não a permitiram lançar-se antes na exploração atlântica. Houve guerras dinásticas e conflitos contra os mouros em Granada, no sul da Península Ibérica. Além disso, a unificação territorial espanhola começou a esboçar-se com a união de dois reinos: Castela e Aragão. A expulsão dos mouros também fez parte dessa unificação territorial.

Os reis Isabel de Castela e Fernando de Aragão foram convencidos a financiar a expedição de um genovês que dizia ser possível alcançar a Ásia pelo oeste. Esse era Cristóvão Colombo. A expedição de Colombo tinha três embarcações, que chegaram ao arquipélago das Bahamas em 12 de outubro de 1492.

A ilha a que Colombo chegou era chamada pelos nativos de Guanahani, mas ele a nomeou San Salvador. Colombo morreu em 1506 e não foi convencido de que tinha chegado a um novo continente. Ele sempre acreditou ter chegado a alguma parte da Ásia.

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Consequências das Grandes Navegações

Muitos historiadores entendem que as Grandes Navegações foram um acontecimento marcante para a história da humanidade. Alguns deles consideram a chegada à América, em 1492, como um evento responsável por consolidar o fim da Idade Média e dar início à modernidade — entendida como um período histórico e como um conceito relacionado com o desenvolvimento de uma nova visão de mundo na sociedade ocidental.

As Grandes Navegações ainda contribuíram para o desenvolvimento da colonização, reforçando, em certa medida, a política monetária na Europa e contribuindo para o desenvolvimento do capitalismo no longo prazo. Portugal e Espanha consolidaram-se como dois grandes impérios ultramarinos.

Créditos das imagens

[1] neftali e Shutterstock

[2] irisphoto1 e Shutterstock

OS PORTUGUESES E A �SIA MAR�TIMA, C. 1500 - C. 1640: CONTRIBUTO PARA UMA LEITURA GLOBAL DA PRIMEIRA EXPANS�O EUROPEIA NO ORIENTE. 2� PARTE: O ESTADO PORTUGU�S DA �NDIA

Francisco Roque de Oliveira
Universitat Aut�noma de Barcelona
,pt

Os Portugueses e a �sia Mar�tima, c. 1500 - c. 1640: contributo para uma leitura global da primeira expans�o europeia no Oriente. 2� Parte: o Estado Portugu�s da �ndia (Resumo)

Por Estado Portugu�s da �ndia entendemos a governadoria ou vice-reinado que, com as suas redes humanas, econ�micas, culturais e religiosas muito mais ao jeito da talassocracia fen�cia que dos modelos territoriais dos imp�rios romano e espanhol, enquadrou a implanta��o do primeiro actor europeu nos Mares da �sia. Nesta segunda parte do nosso artigo come�aremos por caracterizar as respectivas �reas de ocupa��o e estruturas de funcionamento ao longo do per�odo que decorre entre c. 1500 e c. 1600. Concluiremos com uma s�ntese dos ajustamentos ocasionados entre c. 1600 e c. 1640 pela partilha de interesses nesta zona quer entre as duas pot�ncias ib�ricas entretanto a� estabelecidas, como entre estas e ingleses e holandeses, e entre todos elas e o com�rcio conduzido por algumas das principais comunidades mercantis locais. Os tra�os gen�ricos das redes comerciais em funcionamento nestas �guas e o padr�o, tantas vezes novo, ou em r�pida muta��o, de muitos dos seus Estados ribeirinhos, ser�o ainda alguns dos t�picos actualizados. Em qualquer caso, a nossa aten��o estar� aqui centrada nas �reas do Este e do Sueste asi�ticos, porquanto foi nessas periferias que os holandeses � os protagonistas adiantados da segunda expans�o europeia � come�aram por desafiar as posi��es tomadas pelos seus predecessores, uma interfer�ncia de que as estruturas do Estado Portugu�s da �ndia j� se ressentem, de forma irrevog�vel, ao longo da d�cada de 1640.

Palavras-chave: portugueses, Estado Portugu�s da �ndia, expans�o mar�tima europeia; Mares da �sia, s�culos XVI e XVII.�

The Portuguese and the Asian Seas, c. 1500 - c. 1640: remarks for a global review of the first European expansion in the East. Part II: The Portuguese Estado da �ndia (Abstract)

The Portuguese Estado da �ndia was the government or vice-royalty that, with its human, economic, cultural and religious networks much closer to the Phenician thalassocracy than to the territorial models of both the Roman and the Spanish empires, framed the setting up of the first European player in the Asian Seas. In this second part of our article we will start by describing its settlements and working structures between c. 1500 and c. 1600. We will conclude with a synthesis of the adjustments imposed between c. 1600 and c. 1640 by the competition in that same area among the two Iberian powers, the English, the Dutch, and the main local merchant communities. The general features of the trading networks running in those waters, as the often new or fast changing pattern of many of its seaborne States will also be reviewed. Here, however, our main concern goes to the East and Southeast Asia as in that periphery the Dutch � the leading protagonists of the second European expansion � started defying the positions taken by their predecessors, a kind of disturbance already felt by the Portuguese Estado da �ndia during the 1640�s.������������

Key Words: Portuguese, Portuguese Estado da �ndia, European overseas expansion, Asian Seas, 16th-17th centuries

O Estado Portugu�s da �ndia: estrutura e momentos

Uma estrutura em rede

Na primeira parte deste descrevemos o quadro de rela��o nas margens dos Mares da �sia � data da in�cio da primeira Expans�o dos europeus no Oriente[1]. As especiarias que, � parte os aliados crist�os para combater em cruzada, era aquilo que atra�ra os portugueses ao �ndico � pimenta, gengibre, canela, cravo de �cabe�a� e de �bast�o�, ma�as, noz-moscada, para al�m de dezenas de drogas de produ��o oriental ��, ofereciam um t�pico caso de �universo fechado� ou de realidade regional diferenciada da lei do valor no mercado internacional que se manter� vigente para al�m do termo desta cent�ria. O mecanismo � id�ntico ao que estimula noutras paragens a procura de lucros por via de outros artigos agr�colas de produ��o regional tamb�m especializada sobre os quais assenta o com�rcio mundial: por exemplo, a pimenta de rabo e a malagueta africanas ou o a��car de cana sacarina, ajudando a configurar toda uma tipologia de produtos naturais que est� na base de fluxos complementares como o dos metais preciosos, em especial o da prata de Potos�.

Os portugueses moldar�o o seu Imp�rio � medida deste estado de coisas, e a prova mais acabada disso est� no car�cter t�o sui generis desse estabelecimento: concentram-se nas rela��es mercantis, desprezando, � partida, a explora��o directa das terras. O exemplo � o da experi�ncia comercial acumulada durante tr�s quartos de s�culo nos litorais africanos, distinta, portanto, de experi�ncias anteriores e posteriores nas ilhas atl�nticas dos A�ores, Madeira, Cabo Verde, S�o Tom� e Pr�ncipe, Fernando P� (aqui pouco mais do que ensaiada) e no Brasil. Castela competir� com Portugal pela noz-moscada e pelo exclusivo de outras produ��es das Molucas no segundo quartel do s�culo XVI, exibindo a prop�sito destas �ltimas um interesse por rela��es mercantis que n�o abandonaria. Contudo, o sistema que desenvolvera para o respectivo Imp�rio era, no essencial, j� diverso[2].

Na �rea vast�ssima, delimitada a Ocidente por Ormuz e Sofala e, a Leste, por Macau, Ternate-Tidore e o Jap�o, o Estado da �ndia que os portugueses reclamam quando termina o s�culo XVI ter� muito pouco da estrutura pol�tica dos imp�rios da tradi��o cl�ssica europeia ou da modalidade do moderno Imp�rio colonial espanhol, o qual privilegia, como dito, o dom�nio e a organiza��o tradicional de grandes extens�es territoriais. No caso portugu�s, o corpo do Imp�rio � o pr�prio mar[3]. Acima de qualquer outro objectivo, pretende-se o dom�nio e a seguran�a das rotas mar�timas. Para o garantir, s�o mais do que outros �teis os servi�os da ci�ncia n�utica, as pr�ticas da marinharia e o ensaio de novas tecnologias de defesa e de combate naval. Uma s�rie de fortalezas, de feitorias e, em menor n�mero, de centros urbanos, assegura a sustenta��o da rede mercantil. Entre elas, temos, em simult�neo, uma enorme descontinuidade territorial e a circunst�ncia de coexistirem os mais diversos modelos institucionais, muitos dos quais com a agravante de terem sido impostos pela natureza dos espa�os tocados pelo tr�nsito comercial e n�o exactamente concebidos para servirem as necessidades deste �ltimo.

A Coroa, ou quem em nome dela, controla uma am�lgama de territ�rios, de estabelecimentos comerciais e militares, de pessoas, bens e interesses demasiado extensa e diversa para que se possa reclamar sempre o exerc�cio de uma administra��o passiva (iustitiam dare). Coexistem formas em que a ocupa��o terrestre teve a possibilidade de se afirmar com um relativo grau de perman�ncia, permitindo um dom�nio formal mais efectivo e que reproduz com consider�vel coer�ncia e uniformidade esquemas j� praticados na metr�pole ou em outras �reas da Expans�o � munic�pios ou capitanias-donatarias, devendo, por�m, ser notado que os portugueses s� exercem plena soberania e jurisdi��o sobre as cidades ou pra�as de Goa, Cochim, Colombo, Malaca e Macau[4] �, com modalidades mais circunscritas ou rarefeitas de exerc�cio da autoridade: as fortalezas ou as feitorias que mencion�mos, tal como o reconhecimento de protectorados, o assentamento de tratados de paz e vassalagem, ou a simples influ�ncia que exercem noutras muitas paragens mercadores, mission�rios, lan�ados ou aventureiros e piratas[5]. No cap�tulo do dom�nio dos tr�fegos oce�nicos, era dif�cil que o panorama deixasse de reflectir esta configura��o mais geral: a pr�pria Coroa n�o alcan�ar� nunca impor um monop�lio para Leste de Malaca sobre os tratos de que reclama o exclusivo, e mesmo para o mar a Ocidente do estreito com esse nome o monop�lio era infringido[6].�

Do ponto de vista formal, a express�o Estado de �ndia s� se generalizaria na segunda metade do s�culo, encontrando-se o cronista Jo�o de Barros entre os que primeiro a empregaram, o que fez no texto da D�cada I da sua Asia, publicada em 1552, em Lisboa. No plano pr�tico, isso tem de ser contrabalan�ado com dois aspectos de partida.

Em primeiro lugar, desde 1505, quando o rei D. Manuel (r. 1495-1521) � representado no �ndico pela autoridade permanente de um vice-rei, por sua vez centro de um corpo pr�prio de dignat�rios e de �rg�os de soberania e administra��o, tal estrutura institucional pode ser dada por adquirida[7]. Em segundo lugar, a express�o apenas abrange os interesses tutelados de forma oficial pela Coroa. Ora, come��mos por saber que esta se comporta muitas vezes sem constituir uma entidade soberana plena e muitas outras acima de tudo como uma empresa comercial, sujeito entre os demais de direito privado em territ�rios dependentes de soberanias alheias.

Depois, existe ainda uma presen�a portuguesa de contornos informais, disseminada por v�rios mares adjacentes ao �ndico e por outros tantos territ�rios circunvizinhos, para a qual o Estado � um concorrente, quando n�o um oponente � no �ltimo quartel do s�culo XV um fen�meno id�ntico reconhecera-se nas costas da Guin�, onde muitos portugueses lan�ados ou tangomaus penetravam nas sociedades nativas, competindo e violando muitas vezes os monop�lios realengos com um trato de cabotagem ou de retalho em terra[8]. Mesmo assim, nem um aspecto, nem o outro nos impedem de concentrarmos a nossa aten��o na entidade mais ou menos formal que a express�o em causa designa[9].

A rede que os portugueses estruturariam de modo progressivo, colocando em contacto v�rios espa�os e dando, no final, forma ao seu Imp�rio asi�tico, seguiu um modelo que tamb�m diverge do que fora aplicado na �rea por um reino como o de Mojopahit, em Java, capaz de balancear nos seus momentos de apogeu os respectivos interesses entre a orizicultura e o controlo das rotas comerciais do Arquip�lago. No caso portugu�s, � mais extrema a depend�ncia da circula��o e da troca de produtos do que a que praticava a talassocracia mu�ulmana sua rival, mais extrema inclusive do que a situa��o que os pr�prios poriam em marcha no Atl�ntico, porque a� o a��car f�-los-� optar claramente pela estrat�gia territorial nas ilhas e no Brasil. Como se disse, o modelo segue os exemplos Norte-africanos, onde uma sucess�o de fortalezas costeiras se conserva em preven��o constante para a guerra, mantendo vivo o esp�rito de cruzada e assegurando o m�nimo apoio log�stico e estrat�gico necess�rio ao trato. Por dois outros aspectos o modelo do Estado da �ndia � ainda distinto das demais pr�ticas locais: � imposto por um grupo estranho � �rea e � determinante a import�ncia que assume a popula��o urbana dentro do conjunto.

O contingente portugu�s concentra-se na sua imensa maioria em espa�os com caracter�sticas urbanas, e n�o apenas � m�nima a import�ncia da actividade agr�cola, como o relevo secund�rio da generalidade dos territ�rios adjacentes �s principais pra�as se reflecte na conserva��o, que era norma a�, dos regimes administrativos preexistentes, fosse porque faltasse for�a ou empenho para os alterar, fosse t�o-s� porque eram dispens�veis. Com o aproximar do final do s�culo XVI notar-se-� uma tend�ncia no sentido de um maior envolvimento territorial, condicionado pelo aumento da popula��o residente que resultava da pol�tica de casamentos mistos que era praticada ou do alargamento das �reas evangelizadas, factos que s�o simult�neos a uma crescente afirma��o do poder central e � afina��o da ideia de Estado, autoridade esta que, por seu lado, se divorcia progressivamente da actividade mercantil, tida por menos digna. No entanto, nada disto � ainda suficiente para inverter o padr�o vigente e fazer subordinar a l�gica da rede � dos espa�os, algo que s� desponta na passagem do s�culo XVI para o s�culo XVII, quando, entre outros aspectos para tentar compensar o decl�nio da hegemonia naval portuguesa, se avan�ou com a ocupa��o do Ceil�o (frustrada), ou, um pouco mais tarde, com a penetra��o no interior mo�ambicano pela via dos rios de Sena[10].

Cedendo, por uma vez, �s relativas arbitrariedades cronol�gicas da historiografia tradicional, de 1498 (chegada de Gama a Calecute) a 1515 (submiss�o de Ormuz) decorre o primeiro de quatro per�odos em que � usual dividir a hist�ria do Estado da �ndia, neste caso correspondente � fase de forma��o. Sempre pelo mesmo m�todo, entre 1515 e 1622 (queda de Ormuz para a alian�a entre o X� Abbas da P�rsia e os ingleses) tem-se a respectiva estabiliza��o e o momento de maior grandeza. Para l� do essencial do tempo aqui revisto, entre 1622 e 1739 (queda de Chaul e de Ba�aim/Vasa�/Bassein, com toda a Prov�ncia do Norte, salvo Dam�o/Damau/Damaun) acontece o per�odo de retrac��o e decad�ncia. Por �ltimo, entre a �ltima destas datas e 1961 (o ano da invas�o de Goa, Dam�o e Diu pela Uni�o Indiana) vem o de reformula��o e de sobreviv�ncia[11].

Logo no in�cio do primeiro desses per�odos aprende-se que as manufacturas que os europeus t�m a oferecer aos mercados indianos, produtores de uma oferta de manufactura equivalente mas que contam com produtos naturais em muito maior abund�ncia e com metais preciosos em barra ou amoedados, obriga ao envolvimento no circuito da troca de ouro do Monomotapa que Sofala escoava pelos tecidos de algod�o indiano � do Guzerate, mais do que de qualquer outra origem �, dando num imediato acerto com o com�rcio triangular praticado na regi�o. Quando a presen�a � ainda intermitente ou prec�ria, ditada pela ida e vinda das armadas ou pela passagem destas ao longo da costa do Malabar, come�a a funcionar a linha Lisboa-Cochim que transporta as especiarias para a Europa. Mas esse pronto reconhecimento da necessidade de diversificar as fontes de com�rcio conduz � expans�o do sistema em vigor, e � assim que, poucos anos volvidos, ao se atingir o termo deste intervalo de tempo, o com�rcio entre costas e mares da �rea suplanta j� em volume e em lucro o que se processa entre a �ndia e a Europa.

Do uso de portos aliados como os de Cochim ou Cananor que acontece durante os primeiros anos passa-se para funda��o de outros entrepostos comerciais em Angediva, Socotor� e Mo�ambique e � sujei��o de Qu�loa. De 1510 a 1515, sob o governo de Afonso de Albuquerque (1509-1515), v�m as conquistas de cidades como Goa (1510) e Malaca (1511), imp�e-se o protectorado a Ormuz (em 1515, como acab�mos de escrever), ao mesmo tempo que se processa o relatado avan�o para Leste a partir de Malaca que levar� ao reconhecimento da Insul�ndia e do Extremo Oriente. Por�m, se a �rea de alarga em definitivo e se, com ela, se multiplicam as posi��es adquiridas, n�o � alterado o princ�pio segundo o qual a territorialidade � sempre suced�nea da viabiliza��o da rede, n�o se qualificando nunca como um objectivo em si. Repare-se que Goa � ocupada porque sobressai a necessidade de se instituir uma capital em posi��o central, capaz de assegurar o dom�nio do �ndico, sobretudo quando se constatar a impossibilidade de subordinar Calecute � e em 1543, quando se ocuparem as tanadarias ou as terras-firmes de Bardez (Bard�s) e Salcete (Salsete), as vantagens defensivas e de abastecimento que estas assegurar�o para a capital n�o secundarizam as raz�es priorit�rias que haviam levado a esse estabelecimento. A l�gica que faz depender a posse de pontos litorais da articula��o que estes facultem entre espa�os abastecedores e consumidores � mais n�tida ainda no caso das implanta��es do Malabar que servem o fluxo da pimenta, nas do Golfo de Cambaia, que servem os t�xteis do Guzerate, rev�-se na referida Goa, que tamb�m importa manter pela procura de cavalos �rabes e persas que se sente da parte de v�rios reinos do interior, tal como nas terras de Ba�aim e Dam�o, as quais, mais do que o abastecimento de g�neros �s restantes pra�as, garantem a cobran�a de rendas fixas de origem fundi�ria com que o Estado da �ndia se pode compensar em anos em que o com�rcio � menos lucrativo[12].

Chegar, impor e conceder

Entre a chegada ao �ndico, em 1498, e os primeiros contactos com o Mar do Sul da China, em 1513, s�o �bvias a fulminante expans�o geogr�fica e o aprofundamento do sentido de muitas das presen�as portuguesas nos Mares da �sia, decalcando a geometria dos principais portos que apoiavam o tradicional com�rcio transcontinental com a Europa: confrontos inaugurais com os mouros de Calecute que exportavam o grosso das especiarias para o Mar Vermelho; apoio dos reinos de Cochim e Melinde; quebra da hegemonia de Qu�loa; derrota da frota eg�pcia, em 1509, testa de ponte dos interesses dos v�rios estados mu�ulmanos e pr�-mu�ulmanos, assim como dos de Veneza; tomadas de Goa e Malaca; sucessivas viagens de explora��o ao Pegu, ao Si�o, a Java, a Timor, �s Molucas e, enfim, a Cant�o. Logo a seguir, d�-se a referida conquista de Ormuz e o Imp�rio adquire uma configura��o que n�o ser� muito diferente da que se lhe reconhece na d�cada de 1620.

Pelo meio, sem que se registem conquistas espectaculares, n�o deixa de se adensar a malha das posi��es portuguesas por interm�dio da constru��o de fortalezas ou de feitorias, sobretudo no que respeita ao Sul da �ndia: fortaleza em Coul�o, no litoral indiano do Malabar, mais de uma d�cada ap�s um primeiro intento nesse sentido ocorrido logo em 1505; feitoria em Ceil�o (1518), implanta��o no Guzerate, onde se estabelece feitoria em Chaul (1521) e s�o tomadas Ba�aim (1534) e Diu (1535), vindo depois Dam�o e territ�rios adjacentes, em 1559; em 1543, como dito, o territ�rio insular de Goa foi acrescentado das zonas de Bardez e de Salcete. Na costa oriental africana, Sofala centralizava o com�rcio do ouro e Mo�ambique oferecia escala � navega��o entre Portugal e a �ndia � o forte de S. Sebasti�o na ilha de Mo�ambique data de 1558, pouco anterior �s novas e mais poderosas fortifica��es de Mascate, a cidade na costa de Om� que domina o respectivo golfo e que era sat�lite do poder portugu�s desde 1515[13]; o forte de Jesus de Momba�a � erguido em 1509 e mant�m-se sob dom�nio luso at� ao s�culo XVIII[14].�

Ternate, em 1522, e Macau, quando terminava a d�cada de cinquenta, s�o outras posi��es-charneira neste complexo. Como a �ltima, o estabelecimento informal de S�o Tom� de Meliapor (Mayilapuram, sub�rbio da actual Madrasta), nascido como col�nia espont�nea de mercadores portugueses equipar�vel �s de Negapat�o (Nagappatinam) e Paleacate e contra o qual o Estado da �ndia chegar� a mobilizar em 1540 uma expedi��o punitiva, acaba cidade portuguesa provida do respectivo foro, vindo a ser sede de bispado na entrada do s�culo XVII[15]. Esta sequ�ncia n�o � exaustiva, mas permitiu conduzir-nos ao tempo de meados do s�culo a partir do qual a actividade expansionista ser� claramente refreada, s�o refor�adas as medidas defensivas e os interesses atl�nticos, de que o Brasil � protagonista maior, passam a ser equacionados por muitos como alternativos em rela��o aos do Imp�rio oriental[16].

A mesma sequ�ncia n�o deve iludir um outro facto fundamental: o progressivo envolvimento no com�rcio asi�tico, condicionado em grande parte pela escalada de viol�ncia m�tua entre portugueses, mu�ulmanos do Malabar e os aliados destes, n�o teve correspond�ncia num plano gizado de antem�o visando o controlo com car�cter duradouro do tr�fego da especiaria pela rota do Cabo. Este, traduzido pela estatiza��o do com�rcio e pela imposi��o dos monop�lios, � tomado de in�cio pela Coroa entre o mais como um expediente �til e tempor�rio para a acumula��o de liquidez que lhe serviria para financiar a guerra. Lisboa acalentava, pelo menos desde a segunda metade do s�culo XV, o objectivo messi�nico da conquista de todo o Norte de �frica e do sultanato mameluco, incluindo Jerusal�m. A cruzada em Marrocos estimulara os primeiros inqu�ritos sobre o Preste Jo�o das �ndias, sen�o o pr�prio processo dos descobrimentos mar�timos[17]. Enquanto este primeiro projecto se abandona com o tempo e os mercadores aprendem as vantagens do sistema comercial que vigora nas costas atl�nticas de �frica a Sul das Can�rias, razoavelmente pac�fico, apoiado num n�mero m�nimo de estabelecimentos costeiros e coberto pelo texto de bulas papais de 1455-1456 e pelos tratados de Alc��ovas-Toledo (1479-1481) e de Tordesilhas (1494), a ideia imperial de tipo medieval n�o deixa de fazer o seu caminho, reaparecendo no plano manuelino de conquista do Pr�ximo Oriente, no qual � defens�vel reconhecer-se uma inspira��o joaquimita.

O bloqueio econ�mico que asfixiaria o Egipto, ideia velha de s�culos, imp�e-se como primeira etapa e a necessidade de uma alian�a com o Preste volta a ser evocada. Assume-se tamb�m a complementaridade entre esse bloqueio e a pr�tica do corso sobre os navios mu�ulmanos no Mar Ar�bico, fonte acrescida de proventos, sendo secund�rio nestas manobras o ensejo de protec��o � rota do Cabo, por ora pensada segura e est�vel. Conquistados o Egipto e Jerusal�m, o com�rcio tornaria ao Mar Vermelho por se tratar da rota mais curta e � muito poss�vel que, ent�o, D. Manuel reclamasse para si o t�tulo de Rei de Reis ou de Imperador do Oriente[18], prop�sito suficiente para explicar a razo�vel discri��o com que tudo isto passa para as fontes da �poca.

Algu�m como Albuquerque, enviado para a �ndia como seu segundo governador, participa destas esperan�as messi�nicas na queda do Cairo � referido por �Sultanato de Babil�nia�, a soar � �Babil�nia, a Grande Prostituta� do Apocalipse de S. Jo�o � , sonha, como os venezianos, com um istmo de Suez rasgado � imagem dos pretensos projectos de Alexandre Magno, e come�a por concentrar a sua aten��o sobre o Pr�ximo Oriente. � s� num segundo momento que tanto realiza a necessidade de uma presen�a mais do que simb�lica na �ndia para levar a bom termo tais projectos, como a precaridade do tr�fego escoado pelo Cabo. A solu��o parte dos mercadores portugueses, genoveses e florentinos, que s�o quem primeiro indica que as disfun��es podem ser facilmente compensadas com uma entrada pac�fica nos tratos locais de cabotagem e de m�dio curso. Defensores at� ao limite de uma liberdade de com�rcio que permitisse rivalizar com Veneza, opositores � pol�tica de monop�lios r�gios e avessos �s fric��es pol�ticas que desencadeariam uma alian�a com o Preste ou uma pol�tica absorvida com a conquista, estes far�o ver das vantagens da participa��o privada na empresa e, ainda, da lucrativa actividade de corso.

Em abono dessa qualidade algo transit�ria das inten��es reais que choca com vozes como estas, refira-se que nem Goa, Ormuz ou Malaca, nem nenhuma das conquistas asi�ticas da primeira metade do s�culo decorreu de uma iniciativa da Coroa[19]. D. Manuel como que se trai por uma vez quando d� instru��es ao seu primeiro vice-rei da �ndia no sentido de se ver aclamado rei de Cochim, mas o epis�dio, que denota uma franca aspira��o a um assento no Malabar, parece ter sido excepcional. A norma quer que seja imposto aos soberanos mu�ulmanos (de Qu�loa, de Chaul, de Ormuz, por exemplo) o pagamento de p�reas, a classe de tributos que se aplicara no contexto medieval peninsular, que Castela ensaia durante algum tempo antes de passar � conquista directa no Novo Mundo e que os portugueses praticavam um pouco antes destes em v�rias cidades costeiras de Marrocos.

Traduzindo, mais do que outra coisa, um direito de domina��o eminente � apostado, assim, no exerc�cio da suserania imperial e n�o tanto no da soberania real no Oriente ��, tem a sua contraprova nos la�os de parentesco espiritual ou fict�cio que se buscam estabelecer entre os reis de Portugal e os soberanos locais n�o mu�ulmanos. Antes, em 1491, o baptismo do rei do Congo permitira que este fosse tratado por �primo�; agora, o rei de Cochim ser� considerado �irm�o�; projectam-se casamentos entre pr�ncipes portugueses e de Vijayanagar; e, nos casos de alguns pequenos reinos mu�ulmanos do Malabar que derrotara, � o pr�prio rei de Portugal quem, para garantir o abastecimento de pimenta, se compromete ao pagamento de uma anuidade, para o que se fala em ten�as � de tenentia �, outra forma de afirma��o de um la�o de vassalagem que parece n�o desrespeitar a soberania dos monarcas subordinados. Quando se endere�am ordens concorrentes para a constru��o de fortalezas � em Socotor� ou Malaca �, acaso contra a vontade dos locais, ou quando se nomeiam capit�es-mores para o Mar de China (desde 1519) e se ordena a constru��o de uma fortaleza nessas costas (1521), aparenta uma vez mais ser sobretudo o convencimento de exerc�cio de uma imperatoria potestas sobre as soberanias locais o que prevalece em esp�rito, portanto sem que, com isso, se tratasse objectivamente de as p�r em causa[20].

Tanto como n�o se d� por um plano pr�vio que houvesse considerado o envolvimento a fundo e em extens�o no sistema comercial chamado �de �ndia em �ndia� �� pelo que, como come��mos por afirmar, � por demais delicada a hip�tese do mundo para l� de Ceil�o ou o Extremo Oriente terem feito de alguma forma parte do horizonte geopol�tico inicial de D. Manuel ou de D. Jo�o II, seu antecessor� (r. 1481-1495)[21] �, as decis�es que a Coroa toma at� meados do s�culo sobre o protagonismo que se reserva para a empresa oriental tamb�m vaguearam ao sabor das conjunturas do reino e do local, em especial as que vinham induzidas pela press�o do partido �liberal-mercantilista� que joga a sua sobreviv�ncia diante dos interesses estatais. Superada a indecis�o inicial, muito marcada por uma deficiente antecipa��o da realidade do �ndico, no primeiro dec�nio do s�culo XVI o Estado chamar� a si a coordena��o de uma presen�a a um tempo comercial e pol�tico-militar. Visam-se os comerciantes �rabes do Pr�ximo Oriente que dominavam a entrada do Estreito e, daqui, acertam-se baterias contra os mu�ulmanos do Guzerate, presentes um pouco por todas essas �guas: aprisionamento de navios, com a subtileza relativa do corso puro ter tomado a forma, generalizada a partir de 1502, da pr�tica dos cartazes, os salvo-condutos que exclu�am a navega��o dos inimigos e que, quer garantiam que n�o se rompesse o bloqueio do Mar Vermelho, quer que n�o se transportassem mercadorias do tipo daquelas que Portugal reservava para si, caso das especiarias ou das armas[22].

V�rios contratempos somados n�o podem ser desligados de medidas mais radicais, como a que, a breve trecho, reivindica para o rei o monop�lio do trato da pimenta em todo o �ndico. A fortaleza de Socotor� era abandonada em 1511, depois de se constatar a inefic�cia de uma vigil�ncia efectiva sobre a navega��o pelo Estreito, na sequ�ncia, de resto, dos abandonos de Angediva (1506) e Qu�loa (1512)[23]. Falha a conquista de Ad�m (1513) e o patrulhamento do mar largo, tal como o das costas do Malabar, revelava a sua reduzida efici�ncia. A navega��o mu�ulmana passa a procurar as Maldivas por forma a iludir o corso portugu�s. Ao mesmo tempo, a crescente procura a que estes sujeitam a pimenta faz disparar os pre�os deste produto e desvia o respectivo abastecimento preferencial para os portos da �sia do Sudeste. No meio de tudo isto, um Imp�rio Mameluco enfraquecido pelo cerco luso acaba tomado pelos Turcos Otomanos (1517), quem pronto reorganiza a rota pimenteira tradicional e condena em definitivo a rota do Cabo, a qual se torna subsidi�ria em rela��o aos proventos angariados por interm�dio do com�rcio local. O rei reage a este descaminho de pre�os com a tal ideia de monop�lio alargado, supondo-se, simultaneamente, capaz de vir a regular a procura no Malabar e de manter reduzida oferta em Alexandria, sua potencial concorrente nos mercados do Levante.

Descontando j� as inimizades e a explos�o da guerrilha mar�tima que se adivinham por via de um redobrado controlo da parte do Estado da �ndia de um circuito de com�rcio livre, pujante e antigo, a ser lesada a crescente participa��o de mercadores privados lesavam-se tamb�m as cobran�as alfandeg�rias de Goa, Malaca e Ormuz �� aqui, cobran�a sobre metade de alf�ndega � para as quais se reservava o papel de principal parcela de receita do mesmo Estado. Da�, n�o sem contradi��o, a relativa toler�ncia que denotam algumas decis�es interm�dias, melhor, talvez mais fraqueza que toler�ncia, porque � de mencionar que ao desastre de Ad�m junta-se o da Maroma, em Marrocos (1515) e, dois anos depois, o falecimento da rainha D. Maria, filha dos Reis Cat�licos e principal sustent�culo da ideologia messi�nica na Corte[24].

Assim, em 1515, � proibido que sejam feitas presas em Malaca, considerando-se que a cidade pode conservar a sua liberdade porque a dist�ncia a que se encontra faz com que n�o interfira nos interesses visados no Mar Vermelho; o risco de despovoamento desta cidade deu tamb�m em que, em 1519, o rei recomendasse ao seu feitor a participa��o dos mercadores da terra no trato das drogas e o respectivo envolvimento no seu neg�cio; e, entre 1515-1518, durante o governo do vice-rei Lopo Soares de Albergaria, assiste-se � suspens�o da ofensiva contra o Pr�ximo Oriente, ao abandono do projecto de constitui��o de um ex�rcito permanente, cont�m-se de modo volunt�rio a autoridade do Estado ao ser-se c�mplice do recrudescimento da actividade comercial privada, postura que teve como resultado imediato a reorienta��o irrevers�vel dos interesses portugueses do mundo isl�mico para a �ndia do Sul e a �sia do Sudeste (fixa��es em portos da Insul�ndia como Pedir, Pahang, Bant�o, Brunei e Maluco, mas ignorando-se a Indochina)[25] e o abandono das pra�as por parte de um sem-n�mero de pequenos comerciantes nacionais, configurando uma esp�cie de deser��o do servi�o oficial que envolveu ainda soldados. Os anais tratam tal fase por �grande soltura�, simult�nea a uma anarquia generalizada e a um aumento do corso e da pirataria praticado por muitos dos que agora se furtavam a enquadrar a presen�a oficial do Estado da �ndia, situa��es sobremaneira desprestigiantes para a imagem do governo portugu�s na �rea, at� porque alguns se comportam como perfeitos renegados ao servi�o do Isl�o. Mas, deve sublinhar-se, nem nesta altura se decide suprimir qualquer possess�o na �sia.

Mais monop�lios r�gios e mais imp�rio

A 26 de Fevereiro de 1518, uma Provis�o de Lisboa d� conta da institui��o do monop�lio r�gio da pimenta[26]. N�o satisfeito, D. Manuel continuar� a buscar inverter os excessivos compromissos com que o com�rcio privado lograra dobrar a autoridade do Estado da �ndia nesse breve intervalo com outras tantas demonstra��es de renovado intervencionismo: dois anos depois, a ordem volta a ser publicada, desta vez somada � amea�a de escravid�o aos mouros que a infringissem e � de pris�o e retorno compulsivo ao reino se o infractor fosse portugu�s[27]; um Regimento n�o datado de Diogo Aires, feitor da China, revela que os particulares autorizados ao transporte de pimenta da �ndia para a China estavam obrigados a adquiri-la na feitoria[28], sabendo-se por outras vias que apenas em Samatra a compra podia ser feita directamente ao mercador, o que constitui sintoma da conhecida rarefac��o de autoridade central a Leste; pelas Ordena��es da �ndia, de 1520, o monop�lio � estendido da pimenta ao cravo, � ma�a, � noz-moscada, ao lacre, � seda e ao tincal (borato de s�dio hidratado), medida simult�nea � que visa a tutela pela Coroa do embarque da seda e da pimenta em Samatra, � que limita a mobilidade dos soldados e funcion�rios das pra�as portuguesas, � que pro�be a trespassa��o de soldos, a participa��o de funcion�rios do Estado no com�rcio de v�veres, o tr�fego de escravos da �ndia para a Europa, o de alquecas (laquecas), o de cavalos fora de Goa e, entre mais, o desembarque de mercadorias nas ilhas atl�nticas servidas pela escala das naus da Carreira da �ndia (a viagem anual entre Lisboa e Goa, e vice-versa)[29]; as Ordena��es Manuelinas, publicadas em 1521, reafirmam o monop�lio r�gio sobre o trato da Guin�, Mina e �ndia, no que constituiu o momento culminante de todo este processo[30]; pelo meio, contabiliza-se a favor da decis�o pelo monop�lio do cravo a pressa em acudir �s Molucas, amea�adas pela viagem de Fern�o de Magalh�es e pela feitoria que os castelhanos instalam em Tidore, fazendo perspectivar a abertura de uma terceira via de acesso �s especiarias[31].

Tal como se reafirmam os monop�lios realengos, assim � reanimada a pol�tica de fei��o imperial: constr�i-se a mencionada fortaleza-feitoria em Chaul, na costa do Conc�o, ap�s intento sem efeito em Diu; remete-se uma expedi��o de ataque ao Bar�m, rebelado contra o rei de Ormuz, seu suserano, por seu turno vassalo do rei de Portugal[32]; em 1520, expedi��o ao Mar Vermelho, de que resultou o encontro t�o ansiado pela Cristandade com as autoridades et�opes[33]. De pareceria com estas movimenta��es que querem repor uma certa coer�ncia de cruzada na empresa, almeja-se recuperar para o �mbito da Coroa a dissid�ncia informal de muitas das col�nias de privados portugueses anichadas em �reas perif�ricas. Com esse fim � nomeado em 1521 um feitor r�gio para a costa do Coromandel, a quem cumpre gerir o com�rcio do rei na �rea, passar cartazes �s embarca��es locais e conter o passo desses particulares para l� do Cabo Comorim[34]. Em 1519, com a cria��o de uma armada da costa de Ceil�o, principiara a p�r-se guarda aos estreitos de Palque e de Manar que abrem o acesso ao Coromandel. O forte de Ternate, tal como a fortaleza que o precede em Pac�m, no Norte de Samatra, antecipam uma eventual contenda com Castela no Maluco, mas asseguram igualmente uma bandeira para a Coroa portuguesa numa �rea em que os seus mercadores exploravam com relativo �-vontade.

Os recuperados projectos de superintend�ncia r�gia perspectivam de igual forma a costa da China, situa��o a que, de novo, n�o � alheio o perigo castelhano. Nestes que s�o anos de franco optimismo, o rei chama a si a passagem de licen�as aos particulares que a� comerciam e, como se notou, nomeia anualmente um capit�o-mor para uma viagem da �ndia a Cant�o � Duarte Rodrigues, o feitor da armada planeada em 1519, recebeu o encargo de trazer 200 quintais de seda, 4000 a 5000 de papos de alm�scar, 10.000 cruzados de alj�far e 600 de porcelana, cofres dourados, panos de brocado, cestos e �coisas lindas�[35]. O monarca explicita tamb�m que uma armada se deve manter em tr�nsito constante entre Pac�m e os portos chineses por forma a abastecer estes �ltimos sem desviar para a� a pimenta malabar destinada ao com�rcio local e � Europa, e, ainda, na mesma altura em que planeia a constru��o da fortaleza nessa costa, nomeia um feitor e capit�es para a armada que deve estacionar ao largo do Celeste Imp�rio e para um navio que ordena seja constru�do no local[36].

Soltura privada e outros abalos

A partir daqui, � percept�vel que o Estado prefere ser omisso no cumprimento efectivo destas disposi��es, e isto tanto porque durante o reinado de D. Jo�o III que agora se inaugura (r. 1521-1557) ressurge a oposi��o cortes� aos projectos imperialistas do seu antecessor, oposi��o que o pr�prio novo monarca polarizara quando pr�ncipe, como porque ainda o derradeiro representante de D. Manuel na �ndia, o seu governador Diogo Lopes de Sequeira (gov. 1518-1522), conhecedor das dificuldades no terreno, regressa ao reino deixando instru��es para que n�o se efectivasse com demasiado rigor a vigil�ncia prescrita para o monop�lio das drogas e da pimenta, mesmo que os prevaricadores fossem mouros. Depois de 1533, este conceito � sujeito a revis�es sucessivas que o abrandam, se bem que nunca o suprimindo uma vez que os monop�lios r�gios mantiveram a sua exist�ncia durante todo o s�culo XVI: o Estado portugu�s conservar� a sua fei��o mercantilista, n�o deixando de concorrer e de contrariar os interesses comerciais dos seus s�bditos.

Um outro dado fundamental refor�a esta ideia de uma abertura gradual que vai de encontro aos desejos de quem se instalara por dentro dos mecanismos do trato local. Falamos da concess�o real da capitania de viagens de m�dio curso realizada em navios do Estado, uma pr�tica se inaugurara em 1515 quando o monarca enviara de Lisboa Fern�o Peres de Andrade como capit�o-mor de uma armada que deveria fazer sua �a capitania do descobrymento da enseada de bengala e da chyna� logo depois de tocar a �ndia[37]. De facto, a partir do in�cio da d�cada de 1530, torna-se comum a substitui��o das expedi��es armadas pela Coroa de parceria com comerciantes asi�ticos dos primeiros tempos dada a ver pelo privil�gio que Andrade colhera, associando Bengala e a China. As primeiras nomea��es confirmadas contemplam a carreira Cochim-Malaca e a do Coromandel (Meliapor) para Malaca, em 1531 e 1546, respectivamente[38]. � um dado que a medida centralizava as opera��es, mas n�o s� n�o abrange todos os tratos (especiarias � parte, muitos produtos n�o s�o guardados pelo monop�lio), como o Estado acaba por vezes por abdicar do exclusivo de certas mercadorias defesas e concede licen�as a particulares para que estes as transaccionem em liberdade. Para al�m disto, os oficiais r�gios associados a cada carreira tinham direito a uma quota parte do espa�o do navio para o transporte gratuito de mercadorias � os gasalhados � , direito este para mais pass�vel de ser alugado a comerciantes privados. Por �ltimo, a estes �ltimos estava ainda reservado o direito de embarque de produtos nos navios das carreiras da Coroa a troco do pagamento de fretes e direitos.

Com o tempo, o sistema evoluiu para a concess�o de licen�as a particulares para que estes realizassem viagens em navios que cumpria aos pr�prios armar e onde a Coroa n�o investia qualquer capital. Trata-se das chamadas viagens de lugares, substitutas da maior parte das antigas carreiras entre finais da d�cada de 1550 e 1570, destacando-se entre estas as do capit�o-mor � China e ao Jap�o, realizadas pelo menos desde 1546 e regulares desde 1555. O Estado reservar� sempre para os seus navios as viagens a Mo�ambique, Ceil�o e �s Molucas[39] como forma de garantir, pelo menos neste caso do Sudeste asi�tico, o abastecimento das fortalezas da regi�o, o que n�o obsta a que tais capitanias sejam concedidas com maior frequ�ncia ainda para l� dos anos de 1560, num momento em que os destinos eram alargados a Tana�arim, Bengala ou Sunda.

No Sudoeste asi�tico, Macau impor-se-� como o porto de partida da generalidade das viagens concedidas �s ent�o chamadas �partes do Sul�, ou seja, e para al�m do Extremo Oriente, as actuais Insul�ndia e Indochina. Da�, estas rumam a Sunda (pela pimenta e drogas), a Timor e Solor (pelo s�ndalo), a Patane (pelo arroz, peixe seco salgado, laca, benjoim, pau-brasil, chumbo, estanho, ouro, marfim ou pedrarias), P�o, a Ayudhya (ligada por vezes com a viagem do Jap�o), ao Cambodja, Champ�, Vietname/Cochinchina (pela seda amarela, calamba, benjoim e cobre), a Banda, �s Molucas (pelo cravo) e a Ceil�o (pela canela)[40]. Se bem que, ao recompensarem servi�os v�rios de personagens perante os quais a Coroa se sente em d�vida, muitas destas licen�as para o tr�fego nas naus del-rei acabem por traduzir um regime de privil�gio equivalente a um monop�lio tempor�rio, as hip�teses de liberaliza��o deixadas pelo esquema posto em marcha saem apesar de tudo refor�adas[41].

Acresce �s contradi��es que vimos referindo que com os vice-reis ou governadores D. Vasco da Gama (gov. 1524), Nuno da Cunha (gov. 1529-1538) e, sobretudo, D. Jo�o de Castro (gov. 1545-1548) voltam a manifestar-se tentativas s�rias de reestrutura��o administrativa e militar de um Estado da �ndia consideravelmente indisciplinado: o primeiro leva ordens para repor o estanco das drogas de Malaca e o �ltimo n�o s� ocupa uma s�rie de posi��es no Canar�, como insiste em constituir um ex�rcito regular sob a forma de �companhias de ordenan�a�, � su��a. Contudo, a tend�ncia dominante era a inversa e traduzia o peso crescente dos portugueses estabelecidos por conta pr�pria, peso demasiado evidente em �reas como o Extremo Oriente para poder ser ignorado por mais tempo.

Por isso D. Jo�o III inscreve entre as tarefas do primeiro desses referidos seus representantes o abandono de algumas pra�as levantadas no tempo de D. Manuel; por isso este rei se abst�m de enviar embaixadas ou expedi��es militares para as costas da China como o fizera o seu pai, tendo indicado aos seus capit�es em Malaca que cobrissem as iniciativas comerciais dos particulares nessa regi�o, as quais conhecer�o sucesso crescente a partir de 1531; por isso � abolido o monop�lio das especiarias em Malaca em 1533, seguido do cravo e da noz de Maluco, se bem que este s� em 1539 e for�ado pelo facto de ningu�m querer ent�o ir a esse destino e de a fortaleza se encontrar desguarnecida[42]; por isso se conjectura a hip�tese de encerrar a feitoria de Antu�rpia, instrumento do monopolismo r�gio na Europa, e abandonar o trato da especiaria de Lisboa para a Flandres (na verdade, a feitoria ser� encerrada em 1549, num momento em que se invertera j� o sentido da corrente de prata que procedia da� para Lisboa)[43]; e, por isso ainda, se come�a a perspectivar suprir as necessidades financeiras do Estado menos com recurso ao estanco (em 1545 pensou-se abolir o estanco da pimenta em todo o �ndico, projecto que n�o vingou pela oposi��o de Goa, que o julga inoportuno e perigoso), mas, antes, com recurso preferencial aos r�ditos aduaneiros que, al�m das alf�ndegas j� controladas, conferia o recente acesso �s de Diu, Ba�aim (entre 1534-1535, viu-se) e � metade em falta de Ormuz (1543)[44].

O debate sobre o papel que deveria caber � Coroa desempenhar no �ndico e que se produz em voz p�blica em torno do novo rei foi radical o bastante para ter equacionado o abandono da �ndia em favor de uma op��o repartida por diversas �reas atl�nticas. Um est�mulo maior desponta na d�cada de 1530, quando a procura de madeira e, em menor medida, a produ��o do a��car, fizeram arrancar a coloniza��o brasileira. Simultaneamente, novas adversidades favorecem essas ideias. O Imp�rio Otomano surge como pot�ncia no �ndico, evento simult�neo ao recrudescimento da concorr�ncia guzerate e ao despontar do poderio do Ach�m, em Samatra. Em 1529, pelo Conv�nio de Sarago�a, as Molucas eram pagas a peso de ouro a Carlos V, criando uma pol�mica fonte de encargos. O poderio portugu�s cede posi��es diante das for�as mouras empenhadas na reunifica��o pol�tico-religiosa de Marrocos, vindo a abandonar a maior parte das pra�as do litoral atl�ntico deste territ�rio entre 1541 e 1550.

Santa Cruz do Cabo de Guer/Agadir foi perdida em 1541 para os xarifes Sa�didas do Suz, no mesmo ano em que se retira de Safim e Azamor e se pensa conservar apenas Mazag�o na �rea do Norte de �frica; Arzila e Alc�cer Ceguer s�o evacuadas entre 1549 e 1550 para providenciar a concentra��o de for�as para a defesa de T�nger e Ceuta. No Mediterr�neo, entre os ataques dos cors�rios Barba Roxa a partir de 1517, o saque de Menorca (1558), as interfer�ncias na pol�tica interna marroquina que culminam com o assass�nio de Mulei Mafamed em 1557, o grande cerco a Malta (1565), a conquista de Chipre aos venezianos (1570), a desforra da Cristandade na batalha de Lepanto (1571) e as conquistas de La Goulette e Tunes, em 1574 (sem efeitos duradouros, como a anterior expedi��o castelhana de 1535 contra Tunes, que contara com colabora��o portuguesa), o avan�o do turco-barbaresco para Ocidente constitui, apesar dos reveses, outra evidente amea�a[45]. A pirataria francesa, que principiara a ser activa anos antes nos mares dos A�ores e que ter� capturado dezanove navios portugueses entre 1520 e 1530[46], faz a sua apari��o nas costas da Guin� em 1541 e lan�a a disputa entre o mare clausum portugu�s e os advogados europeus do mare liberum.

O descontentamento pelo montante e dispers�o dos encargos vai em crescendo e multiplicam-se os defensores da conquista e povoamento de um espa�o cont�nuo e menos exposto. No entanto, as teses mais radicais ser�o postas de lado e as energias acabam por dirigir-se no sentido de consolidar as posi��es adquiridas e garantir a seguran�a do sistema comercial herdado no �ndico. Arrumam-se quaisquer veleidades de conquista do Pr�ximo Oriente e os sonhos imperiais de sentido messi�nico e milenarista (ataque ao Egipto pelo Mar Vermelho, alian�a com o Preste, recupera��o dos Lugares Santos), sem que com isso se tenha optado pela retirada preconizada por alguns[47]. Durante o reinado de D. Jo�o III, Diu, na regi�o do Guzerate, � alvo da �nica tentativa de executar uma nova conquista, mas mesmo a� o car�cter subjacente � o de sustenta��o da empresa comercial no �ndico Ocidental, circunscrita, portanto: a autoriza��o para o estabelecimento em Diu, simult�nea � ced�ncia da faixa litoral de Bombaim a Dam�o � exclusive � � conseguida em 1533 por acordo militar com os guzerates e aparece na sequ�ncia das amea�as que a estes move o Imp�rio Mogol, acabado de fundar sobre os escombros do sultanato de Deli[48].

De par, d�-se um rearranjo de posi��es na costa oriental africana, agora centradas mais a Sul, apoiadas nas fortalezas de Sofala e Mo�ambique. O Mar Vermelho segue sob vigil�ncia das armadas de Goa e as frotas isl�micas continuam na mira do corso portugu�s, se bem que sem se aspirar mais � posse dos mercados de Alexandria. Ormuz � mantida, apesar das limitadas possibilidades que oferece ao trato privado dada a sua condi��o de enclave no mundo isl�mico. Em 1538, Diu apara o primeiro cerco combinado que lhe fazem as for�as do Guzerate, que a querem reaver, e a armada turca, esta entrada no �ndico depois de tomado o I�men e Ad�m. Seguem-se quatro ou cinco anos de negocia��es com a Sublime Porta, tentando os portugueses a coloca��o de pimenta em Ba�or� contra o trigo turco e a garantia impl�cita de que se os primeiros n�o entrassem no �ndico os segundos n�o ripostariam com incurs�es Estreito dentro. Diu sofre e sobrevive a novo cerco dos guzerates em 1546, mais violento do que o anterior, numa altura em que os Otomanos dep�em o emir bedu�no de Ba�or� � lembre-se que mais de uma d�cada antes, os turcos se tinham apoderado do Iraque e for�ado o respectivo soberano � sua soberania.

Neste entremeio, Goa, sede do Estado, confirma as suas potencialidades como entreposto comercial. O Malabar continua a desempenhar o seu papel no com�rcio entre a �ndia e o Reino e a servir para a entrada nas redes comerciais da parte meridional da pen�nsula e de Ceil�o. Malaca d� aos privados aquilo que Ormuz lhes nega. E, pese o custo que acarretava, sobrava muito do empenho que a Coroa fizera quest�o de manter com o objectivo da conserva��o das Molucas, a segunda principal linha estrat�gica ao lado da prioridade do �ndico ocidental. A�, depois de vassalagens adquiridas antes como a das ilhas de Banda, tentara refor�ar a sua presen�a oficial nas principais escalas entre Malaca e as ilhas do cravo com novas posi��es na costa oriental de Java (Gresik e Panarukan/Panaruca), promovera os primeiros contactos com as Celebes, ponderara a decis�o de abrir a feitoria em Brunei que tomar� nos anos 30, procurara erguer uma fortaleza em Sunda em 1527 e, em 1545, o cristianizado sult�o Tabarija doar� Ternate � Coroa portuguesa, seguindo-se a aclama��o de D. Jo�o III como Rei de Maluco. Empenho excessivo, que pagar� com o desmantelamento da fortaleza de Pac�m (1523), a inviabiliza��o do projecto da fortaleza de Bant�o, depois da convers�o ao islamismo que Demak a� leva, ocorr�ncia que significa, simultaneamente, o fim da sua presen�a na regi�o de Sunda[49]. Mas se saia a Coroa, entravam os privados ou os seus pr�prios funcion�rios associados com mercadores locais: em Bant�o e nos restantes portos do Pasisir; no Norte de Samatra; no com�rcio do cravo, que estes levam a que seja liberalizado, como indic�mos; no arquip�lago de Solor, nas ilhas de Banda ou nas �terras do estanho�, Perak e Kedah[50].

A confirmar a mudan�a de atitude posta em pr�tica, numa ocasi�o em que o rei compreende que n�o h� espa�o para grandiloquentes exibi��es de perfil diplom�tico ou militar e opta por instruir o seu capit�o em Malaca para que este promova a retoma dos circuitos privados em direc��o � China, recomenda-lhe �conseruar booa paz e amjzade� com os chineses de Cant�o por junto com que trabalhe nesse sentido �por meo dos da terra do reyno de siam [Si�o] e dos de patane [Patane]�[51]. Aqui, no Extremo Oriente, e ao contr�rio de Maluco e de Banda, onde eram mais apertados pela Coroa, mercadores privados e aventureiros tomam por sua conta a explora��o do com�rcio, o lugar de capit�es e de embaixadores[52]. Trampolim para essas actividades, Patane acolhe cerca de trezentos portugueses em meados do s�culo. As medidas que Goa ou Malaca n�o deixam de tomar a partir de agora n�o visam anular esse estado de coisas, quando muito fazer vigorar um m�nimo de disciplina por forma a prevenir n�veis cr�ticos de despovoamento da presen�a oficial do Estado � por exemplo, armando armadas que se enviam para os portos chineses ou impondo direitos alfandeg�rios em Malaca aos portugueses chegados da China, esses superiores aos cobrados aos mouros ou aos gentios. ������

Outro ind�cio disso � a presen�a a partir de 1542 dos primeiros mission�rios jesu�tas na �ndia: ao inv�s do que acontecera com a generalidade da missiona��o que acompanhara at� ent�o o esfor�o imperial portugu�s no Oriente, a qual vem por regra ocupar espa�os em torno das pra�as portuguesas, a pr�tica inaugurada pelo militantismo apost�lico rec�m-chegado passa tamb�m por zonas em que a presen�a dos europeus ainda n�o se faz sentir. As demais ordens religiosas cedo copiam a estrat�gia � os franciscanos, cuja presen�a � anterior, bem como os dominicanos, agostinhos e demais congrega��es que lhes seguem os passos �, pelo que surgem instala��es ora de umas, ora de outras, em paragens remotas como a Corte do Imp�rio Mogol e a P�rsia, o sultanato de Deli, o Laos, o Tibete, a China interior, o Jap�o e, mais tarde, Timor. O Estado da �ndia vem a alcan�ar alguns desses avan�os que n�o liderara e que prolongam a sua �rea de influ�ncia, mas nem sempre. Os interesses comerciais j� afirmados nas ilhas de Banda, no Maluco, nas Celebes ou no Cambodja constituem facilidades adicionais para a extens�o das actividades mission�rias em curso[53].

Sobreviv�ncia e di�spora

Na segunda metade do s�culo XVI, o chamado Imp�rio Portugu�s Oriental continuar� a ser assediado dos mais diversos lados e a estrat�gia defensiva � t�o not�ria sobre os apetites expansionistas como � preponderante a press�o dos interesses privados dispersos sobre a pedagogia centralista � e esta foi especialmente esfor�ada, veja-se o vasto corpo legislativo de fei��o absolutista promulgado pelo novel monarca D. Sebasti�o (r. 1568-1578) e que contempla, enfim, a cria��o de �companhias de ordenan�a�, um refor�o das armadas e se estende ao campo da pol�tica religiosa, onde faz por aplicar a intransig�ncia sa�da do Conc�lio de Trento. Fazendo-se o balan�o � uma tarefa que � obrigada a ponderar devidamente o car�cter estrutural da sequ�ncia oferecida pelo lento decl�nio do sultanato Guzerate, pela n�o concretiza��o da possibilidade expansionista otomana da d�cada de 1530 e pelo definitivo ascendente mogol do in�cio dos anos de 1570, que compensa ou preenche essas duas aus�ncias, em especial quanto ao dom�nio mar�timo do �ndico ocidental[54] �, fazendo-se o balan�o, diz�amos, o conjunto resistiu.

Resistiu aos encargos que implicava manter um aparato de fortalezas e posi��es que n�o mais se repetir�. Resistiu, tendo conseguido uma regularidade excepcional na Carreira da �ndia e um equil�brio not�vel entre despesas e receitas alfandeg�rias. Resistiu ao incremento assinalado do n�mero de viagens concedidas e ao arrendamento da mesma Carreira. Resistiu ao desleixo, � rotina, � corrup��o e ao clientelismo que se explicam com facilidade numa estrutura administrativa instalada, que funciona a uma enorme dist�ncia da metr�pole, onde o pagamento a funcion�rios e a soldados pode ser t�o irregular e magro como lenta e arbitr�ria a aplica��o da justi�a. Resistiu aos ataques da pirataria Malabar e aos cercos �s suas principais pra�as, do Golfo P�rsico a Malaca, especialmente frequentes durante o terceiro quartel do s�culo, vejam-se� aqueles a que os abexins sujeitaram Dam�o entre 1559 e 1562 e os que, em especial desde 1572, os mogores e alguns dos r�gulos comarc�os, seus vassalos nominais, infringiram � mesma posi��o[55]. E resistiu ao princ�pio da derrocada de Vijayanagar, o seu principal aliado, batido na batalha de Talicota (1565) � quando confrontados com a euforia vencedora dos sultanatos mu�ulmanos do Dec�o, que os amea�avam em 1571 com uma alian�a sem precedentes com o samorim de Calecute, o sultanato Ach�m, o reino de Japar�, em Java e o Gr�o-Turco apoiado por Veneza, os portugueses n�o s� mant�m Chaul, Goa e Malaca (todas foram cercadas, tendo-se perdido apenas Chale, uma pra�a secund�ria), como, entretanto, se haviam antecipado ao vazio aberto na costa do Canar� com a conquista sucessiva das fortalezas de Onor (Honawar), Barcelor (Basrur) e Mangalor (Mangalore), entre 1568 e 1569.

Os preju�zos avultados que implicou o fim do lucrativo com�rcio de cavalos com Vijayanagar, uma descida do valor da pimenta que tamb�m se verifica e a relativa diminui��o da actividade naval no �ndico Ocidental foram em boa parte superados com o afluxo dos r�ditos do novo trato com o Jap�o e o Extremo Oriente em que a vice-realeza de Goa se envolve a fundo, tal como a conquista mogol do sultanato do Guzerate, em 1572, depressa se procurou que fosse absorvida com uma reviravolta in�dita que fez dos portugueses apoiantes das comunidades mercantis guzerates, seus rivais de ontem. Tudo somado, prova-se que a estrutura do Estado da �ndia se conservava � altura dos desafios, ainda que nem isso tenha impedido que se reabrisse a discuss�o que contemplava entre as hip�teses a do abandono de toda essa �rea de presen�a: as vit�rias poderiam compensar a press�o militar e o reclamado princ�pio de controlo dos corredores mar�timos do �ndico n�o foi apoucado mais do que pontualmente pelos governantes asi�ticos (no Sudeste asi�tico e pelos ditos navios do Guzerate), mas esta d�cada de 1570 � tamb�m aquela em que o desenvolvimento da economia a�ucareira no Nordeste do Brasil promete mais do que nunca oferecer uma alternativa vantajosa. Com isto, reabre-se tamb�m a discuss�o sobre as vantagens da conquista territorial sobre a dispers�o da rede. Sabe-se que o compromisso volta a levar a sua avante, e que tal quer outra vez dizer menor peso e protagonismo oficial por contraponto � expans�o das estruturas informais associadas � veniaga e � institui��o eclesi�stica[56].

Durante o j� mencionado terceiro quartel do s�culo a iniciativa militar de Goa limita-se quase exclusivamente �s costas do Mar Ar�bico, enquanto os privados progridem pelo Golfo de Bengala e o Mar da China. De um lado, Dam�o e o rico alfoz de Ba�aim est�o garantidos, em 1560 conquistam-se Jafanapat�o (Jaffna/Ialpanam), na ilha de Ceil�o, e Manar, na mesma ilha, onde se ergue uma fortaleza: nesta �rea, a perspectiva � ainda a de uma presen�a litor�nea. Referida ficou tamb�m a resposta dada sobre a costa de Canar� e com ela conclu�mos a demarca��o de uma certa fronteira para a capacidade de exerc�cio do poder oficial sobre as restantes �reas e sobre os seus sujeitos menos pr�ximos. Do outro lado da aventura, nas �guas do Mar da China, desde 1550 que opera a concess�o de capitanias de viagens. No Golfo de Bengala, o sistema generaliza-se na d�cada de 1550-1560, seguido da Insul�ndia. Por n�o ser de todo estanque, esta delega��o de com�rcios t�o lucrativos em funcion�rios e outros agraciados pela Coroa, se significou um golpe mais profundo do que qualquer precedente sobre as redes mercantis mu�ulmanas, permitiu tamb�m em muitos casos uma relativa conviv�ncia com grupos de portugueses que teimavam em manter-se � margem do sistema.

Veja-se a prop�sito a viagem da China, o trajecto entre Macau e o Jap�o, considerado vedado, ou seja, atribu�do em regime de monop�lio ao respectivo concession�rio, o qual se fazia ami�de de par com privados lusos sediados nesse porto da costa chinesa. Sucedia com este exemplo concreto do com�rcio do Estado no Extremo Oriente a peculiaridade do mesmo n�o ser visto pela Coroa durante todo o s�culo XVI sob o �ngulo dos proventos a retirar para o tesouro p�blico, designadamente atrav�s da venda das referidas viagens � somente no in�cio do s�culo XVII, e em particular na d�cada de 1620, a pen�ria financeira ent�o vivida na Europa e pelo Estado da �ndia desencadeou a abertura da concess�o destas viagens a v�rios conselhos municipais e generalizou a respectiva venda e a dos direitos aduaneiros cobrados pelo vedor da fazenda no Oriente como forma de subsidiar a constru��o de fortifica��es e o fornecimento de meios de defesa na �rea[57]. Embora extraindo lucros formid�veis de uma viagem de com�rcio como a de Goa a Nagas�qui, como acab�mos de mencionar, as autoridades deixam-se acompanhar pelos privados empenhados em parcelas deste trato em boa parte quer como manobra de divers�o que visava desviar esses outros interesses de �reas onde eles pudessem competir directamente, quer como forma de aumentar as recolhas alfandeg�rias em Goa e Malaca[58].

A observa��o conserva validade quando passamos para o campo do exerc�cio da autoridade efectiva sobre v�rios territ�rios onde reside elevado n�mero de portugueses. Na antes apontada costa oriental do Indost�o � em Meliapor, Paleacate, Negapat�o, no apelidado �Imp�rio Portugu�s Bengali�, imp�rio-sombra rival de Goa �, � o Estado quem procura regularizar, sem as ambi��es de tempos anteriores, a sua conviv�ncia com as situa��es consumadas das col�nias espont�neas de mercadores que a� se haviam estabelecido, alguns depois de desertarem do servi�o das fortalezas: entre tentativas v�rias de desalojar e transferir mais do que um desses contingentes, acaba por se acordar num enquadramento administrativo que respeita o essencial das presen�as, o qual, j� no s�culo XVII, acabar� por reconhecer o autogoverno das respectivas chefias como verea��o municipal de direito portugu�s[59]. Para Macau, um outro facto consumado de import�ncia crescente, age-se no mesmo sentido: uma comunidade mercantil relativamente impune suscita a cria��o desse munic�pio em 1582-1583, valendo-se para o efeito da intermitente presen�a do capit�o da viagem da China e do Jap�o, o magistrado r�gio designado para a supervisionar[60].

Este exemplo s� n�o retoma na �ntegra o anterior porque o papel deste representante designado pelo rei era a garantia de que um m�nimo de ordem seria sempre mantido, condi��o indispens�vel para que as autoridades chinesas tenham tolerado a intrus�o que significava[61]. No Jap�o, o exerc�cio da influ�ncia sobre a reorganiza��o do Estado local est� por conta dos mission�rios jesu�tas, cuja presen�a � secundada por in�meros mercadores-aventureiros, e Portugal nunca encarou este destino dentro de um conceito imperialista. Na Insul�ndia, o Estado institui as primeiras capitanias para Solor e Timor sobre o trilho aberto desde 1561 pelas Miss�es dominicanas[62]. Na Cochinchina dos anos iniciais do s�culo XVII, a influ�ncia de jesu�tas e mercadores junto da corte dos Nguyen � seguida por um titubeante Estado da �ndia[63].

Por volta de 1580, o com�rcio da especiaria ressente-se, sem disfarce poss�vel, da concorr�ncia que lhe adv�m do expansionismo mogol, respons�vel pela reanima��o dos circuitos terrestres no interior da pen�nsula hindu, logo pelo preju�zo dos do Malabar, mas tamb�m pelos de Ormuz porque novas rotas unem a �ndia e a P�rsia. Em 1590, o sultanato de Golconda, que de uma posi��o encravada no interior acedera �s costas do Golfo de Bengala e beneficiara, como poucos, da desagrega��o de Vijayanagar, sente-se na necessidade de pactuar com Goa o acesso ao Mar Vermelho. A preponder�ncia comercial e militar do Estado da �ndia continua a n�o estar em causa no Mar Ar�bico, se bem que tamb�m seja verdade que j� fora maior do que agora porque neste �ltimo contrato ser�o extremas as dificuldades sentidas para obrigar as autoridades de Golconda ao envio de arroz para uma fortaleza portuguesa em Ceil�o, uma das contrapartidas acordadas � ced�ncia dos salvo-condutos. Por esta altura, no outro extremo dos mares da Insul�ndia, a influ�ncia deca�ra com mais clareza: desde 1570 que Ternate � uma causa perdida para as sucessivas expedi��es que durante a d�cada anterior tinham buscado a sua recupera��o, quebra que as instala��es alternativas em Tidore e Amboino, ap�s a evacua��o daquela fortaleza em 1575, n�o iludem[64].

Risco em terra e realismo no mar

Filipe II de Espanha ostenta a Coroa de Portugal entre 1581 e 1598, e tanto o Estado da �ndia no seu conjunto como o �ndico Ocidental em especial s�o alvo de uma continuada aten��o da parte do poder central. N�o obstante, estes conservam o seu perfil e o equil�brio realista de interesses que tinham amadurecido no transcurso das oito d�cadas anteriores. Uma profusa produ��o legislativa que busca prevenir a anarquia de muitas situa��es e a inoper�ncia das m�quinas administrativas e militar � despachada para Goa com uma frequ�ncia que diz bem da respectiva inefic�cia. A maior novidade vem do choque nas �reas do Extremo Oriente e da Insul�ndia, onde portugueses de Macau e Nagas�qui e castelhanos de Manila temem pela inger�ncia m�tua nos respectivos mercados, salvaguardados em teoria pela separa��o oficial das Coroas acordada nas Cortes que, em Tomar, tinham sufragado o rei estrangeiro. Apesar da complementaridade entre muitas das ofertas destes tr�s portos, a prata americana que aporta ao Oriente concorre com a que os portugueses transportam do Jap�o e inflaciona o pre�o do cobre chin�s em Macau.

As tens�es traziam-se agravadas porque desde a instala��o em Manila (1571), e para l� do desembarque de castelhanos no Jap�o, se repetiam interfer�ncias dirigidas das Filipinas para Maluco. Tamb�m, em 1578 Castela e Arag�o anexam o Brunei para a sua Coroa, procuram um porto no litoral chin�s, tudo enquanto escolhiam uma modalidade de interven��o continental na Cochinchina e no Cambodja[65]. As repetidas disposi��es que o monarca assina em resposta aos protestos e aos temores de Goa, Malaca e Macau de uma hegemonia espanhola s�o de novo a imagem do desrespeito no terreno, algo que somente a entrada holandesa na Insul�ndia no final do s�culo far� cessar, ao tornar claro que a alian�a � indispens�vel para a sobreviv�ncia a qualquer das partes ib�ricas. Testemunho das complementaridades entretanto aprendidas, entre a mesma altura do termo de Quinhentos e o encerramento do com�rcio com o Jap�o que vai acontecer em 1639-1640, a liga��o proibida entre Macau e Manila que permitia desviar alguma prata do Novo Mundo para a compra das sedas chinesas ter� um incremento importante[66].

Por esses anos de 1580 e 1590, a estrat�gia ponderada em Madrid recupera para o �ndico uma fun��o diplom�tica e militar de cerco econ�mico e guerra de desgaste sobre o Imp�rio Otomano instalado no Egipto. Com o Mediterr�neo posto em relativo sossego pela defesa de Malta e a vit�ria em Lepanto, Filipe II delega no Estado da �ndia o comando do bloqueio do Mar Vermelho e a obten��o de alian�as com o X� da P�rsia (D. Sebasti�o tamb�m o tentara) e com o Imperador da Eti�pia. � sociedade e �s autoridades portuguesas coordenadas por Goa nada interessava a passagem de um quadro de conflito latente e �s vezes bem real com os turcos para um est�dio de guerra aberta. � por esta raz�o que as insist�ncias enviadas da Pen�nsula se acumulam sem receberem resposta ou s�o contornadas frequentemente com solu��es evasivas, para maior desespero do remetente. Salvaguardar-se-� a configura��o do Estado, parecendo que o reacender da guerra que n�o p�de ser evitado no Noroeste do Mar Ar�bico implicou como aspecto mais saliente para essa �rea novo refor�o da linha fortificada na parte meridional da costa oriental africana. Em Malaca, por seu lado, 1587 significou a derrota imposta pelas for�as portuguesas �s do sult�o de Joore, aliado de Ach�m ap�s quebra da alian�a que conservara com os portugueses desde 1582. N�o foi isto sin�nimo de um renovar de uma presen�a indisputada porque o Estado da �ndia manteve a necessidade de se apoiar em alian�as no terreno, acaso t�o impens�veis � partida como a aproxima��o diplom�tica que ensaia com o Ach�m entre a �ltima d�cada do s�culo e os primeiros anos de Seiscentos[67].

� ainda neste contexto que se configura o des�gnio da ocupa��o territorial de Ceil�o que absorver� boa parte das energias portuguesas at� ao in�cio do s�culo XVII. Se os projectos originais procediam do reinado de D. Sebasti�o, a coincid�ncia de um novo conjunto de condi��es e o retomar de certas preocupa��es recorrentes explicam a passagem dos planos � pr�tica. Primeiro, notava-se o relativo decl�nio do poderio naval portugu�s. Depois, existe o modelo tornado pr�ximo pelas circunst�ncias da experi�ncia colonial espanhola e, em particular, o sucesso da conquista das Filipinas (1565-1572), que era inevit�vel que se procurasse reproduzir. Em terceiro lugar, e como tantas vezes antes, a dispers�o de for�as por in�meras posi��es faz pesar a necessidade de uma reestrutura��o profunda do Estado, sempre adiada. O plano que propunha a transfer�ncia de Goa para uma ilha-territ�rio como esta dava a essa prem�ncia uma rara oportunidade de ser concretizada. Por �ltimo, a r�pida expans�o do Imp�rio Mogol � um outro argumento levado em conta quando se querem demover os advers�rios da iniciativa, argumento reiterado um pouco mais tarde quando o expansionismo holand�s amea�ar a partir das franjas opostas o dom�nio dos Mares da �sia.

Ser� hoje f�cil perceber que n�o existiam condi��es para suster duas frentes simult�neas, uma a Norte, contra os turcos, outra a Sul, envolvida na conquista de Ceil�o. Aqui, a passagem do reino de C�ndi, antes aliado dos portugueses, para a condi��o de seu inimigo inverteu a correla��o de for�as. Os portugueses ripostaram sucessivamente com grandes ofensivas e com razias semianuais sobre este. Quer o rei de Jaffna, apoiante apenas formal da Coroa Portuguesa, quer os mercadores portugueses de Negapat�o, S�o Tom� de Meliapor e Manar s�o opositores da nova estrat�gia. Persistentes, as campanhas em prol de uma conquista total de Ceil�o acontecem at� 1630, quando a mudan�a estrutural representada pelo �momento holand�s� lhes sucede e come�a a decidir a posse da ilha para o s�culo e meio seguinte[68].

Importa acrescentar que, � parte os interesses que despertar�o pelas terras do Zambeze e que antes apont�mos, as teses dos que proclamavam as vantagens econ�micas e estrat�gicas de um dom�nio territorial alargado sobre o modelo em rede da expans�o portuguesa se reencontram em v�rios outros projectos contempor�neos e t�o ou mais espantosos do que estes. D. Jo�o Ribeiro Gaio, bispo de Malaca entre 1578 e 1601 e capit�o-interino de Malaca entre Maio de 1587 e Fevereiro de 1588, prop�e em 1584, e de novo em 1588, a jun��o de esfor�os luso-espanh�is para a conquista do Ach�m, Joore e ilhas de Maluco a partir de Goa e via Malaca, numa ac��o simult�nea � que conquistaria o Si�o, Patane, Cambodja, Cochinchina, a China e o Jap�o pela via das Filipinas. Regressado de um p�riplo por v�rios reinos do Sudeste continental asi�tico, o agostinho Fr. Francisco Manrique defende em Macau, no segundo desses anos, a conquista da Cochinchina, do Si�o, do Cambodja e do Champ�. Dois projectos particularmente atentos ao conjunto das rela��es do �ndico e do Mar da China, sendo pelo menos o primeiro deles capaz de perspectivar com especial acuidade o papel desempenhado pelo Ach�m n�o s� no corso que praticava no Estreito de Malaca, como na rota comercial-mar�tima das especiarias, onde aparecia ligado ao Guzerate atrav�s das Maldivas e, da�, ao Mar Vermelho, sempre sob o benepl�cito do Imp�rio Turco. �����������

A vis�o das vantagens de controlo de zonas costeiras associadas ao com�rcio, uma perspectiva alargada sobre o interesse do dom�nio de um vasto espa�o terrestre e o sentido das facilidades que confere a debilidade da presen�a oficial do Estado da �ndia nas �reas-alvo notam-se ainda no plano que Fr. Ant�nio da Piedade, sintonizado com o famoso aventureiro-mercador Diogo Veloso, concebe em 1599 para a conquista do Cambodja e do Champ�. Entre esta s�rie de refer�ncias, sublinhado imprescind�vel para a dupla luso-espanhola dos jesu�tas Francisco Cabral e Alonso S�nchez que, entre 1584 e 1587 e com o apoio das mais altas inst�ncias do governo de Manila, procurar� convencer Filipe II a decidir-se pela conquista da China � ou, pelo menos, de algumas das suas prov�ncias ou cidades litorais[69].

Realinhamentos no com�rcio mar�timo da �sia Oriental, c. 1600 - c. 1640

Na dobragem do s�culo

Quando se menciona a passagem do s�culo XVI para o s�culo XVII nos Mares da �sia � frequente estabelecer-se uma associa��o imediata entre este per�odo e a entrada em cena das pot�ncias protestantes � holandeses e ingleses �, a qual como que subentende terem estes novos actores vindo inaugurar uma era em tudo distinta daquela que os portugueses personificavam desde a sua chegada ao �ndico, um s�culo antes. A prop�sito desta �ltima imagem, j� corrigimos o essencial ao notarmos como a intromiss�o portuguesa no com�rcio mar�timo interasi�tico p�s-1498 correspondeu, sobretudo, a um s�bio ajustamento aos circuitos preexistentes, jamais se tendo traduzido numa ruptura com a complexa vida de rela��o que a� encontraram. Ora, e na mesma linha, se � certo que, quer holandeses, quer ingleses, t�m a partir de agora a sua oportunidade nesta �rea e nela v�m a imprimir a sua marca, tamb�m � certo que n�o s� nada do que protagonizaram � dissoci�vel da realidade econ�mica e pol�tica do Oriente em que se movimentaram, como esta foi menos influenciada do se quer fazer querer pela nova correla��o de for�as entre pot�ncias europeias posta no terreno.

Uma observa��o de car�cter geral e mais ou menos elementar d�-nos a ver que, decorrido um s�culo sobre a viagem de Vasco da Gama, a realidade em que os rec�m-chegados protestantes penetram oferece uma conex�o comercial estabelecida a n�vel mundial. Os s�culos que se seguem aprofundam este panorama, mas as economias do �ndico, da Europa e do Novo Mundo encontravam-se j� por esta altura ligadas entre si. O processo � insepar�vel do adensamento das redes comerciais que unem distintas partes da �sia mar�tima e do crescimento dos montantes de produ��o que muitas destas destinam ao mercado, dois aspectos verificados ao longo das d�cadas seguintes a 1500. Quem quer que viesse para se instalar dispunha � partida de um conhecimento de mercados inexistente nesta �ltima data, de uma lingua franca � o portugu�s, ou melhor, uma vers�o crioula do portugu�s, porque este coabitava desde Madag�scar �s Filipinas com termos emprestados fosse do malaio, do t�mil ou do �rabe[70] �, de uma difus�o generalizada de metais preciosos e de outros meios de pagamento, assim como de armas de fogo, tudo factores aut�nomos em rela��o a qualquer novidade introduzida no dealbar do s�culo XVII pelos novos contendores europeus e que, desde logo, proporcionam uma redu��o substancial dos riscos.

Um outro elemento contextual oferece-o o processo de transforma��o da generalidade dos Estados asi�ticos que decorre desde o in�cio do s�culo XVI. Se at� esta data se podem identificar grosso modo duas categorias, a dos grandes Estados agr�rios e tribut�rios e a dos, por regra, pequenos Estados mercantis (Ormuz, Ad�m, Calecute ou Malaca), tal dicotomia vai-se esbatendo progressivamente a partir da�, � medida que se generaliza o esp�rito mercantilista. O Ir�o do X� Abbas I, o Estado Mogol, Golconda ou, mesmo, a Birm�nia exemplificam o novo modelo de Estado da transi��o do s�culo XVI para o seguinte, com o seu regime interm�dio, semi-agr�rio, semi-comercial. Recorde-se como depois de ter acedido em meados de Quinhentos a retirar-se da condu��o directa de muito do com�rcio realizado � sua sombra, o Estado da �ndia n�o resistiu a �regredir� e viu-se envolvido, ao longo dos anos de 1580 e 1590, em projectos de expans�o territorial em Ceil�o e no Sudeste asi�tico continental, parte por efeito de imita��o da experi�ncia espanhola no Novo Mundo e nas Filipinas, parte por perceber a mudan�a pol�tica em curso em v�rias dessas �reas. No entanto, consumada esta consolida��o em muitos dos Estados asi�ticos, tais projectos deixam de ter qualquer viabilidade, o que continua a ser v�lido caso, entre outros aspectos, o Estado da �ndia tivesse podido contar com um empenho diferente da parte dos Habsburgo, not�rios favorecedores dos seus interesses no Novo Mundo em contraste com os do Imp�rio Portugu�s do Oriente.

A frustra��o dos referidos sucessivos projectos de conquista na �sia do Sudeste peninsular e no Extremo Oriente gizados em Manila e que tentaram tirar partido da tutela conjunta das Coroas peninsulares ser� uma boa contraprova do que acabamos de afirmar. O momento � simult�neo ao dos desafios trazidos pelas Companhias comerciais do Norte da Europa, mas essa volta a ser s� mais uma coincid�ncia em toda a conjuntura. N�o s�o presen�as como as da Verenigde Oost-Indische Compagnie (VOC, Companhia Holandesa das �ndias Orientais) ou da East India Company (EIC, a Companhia Inglesa, fundada em 1600 e designada a princ�pio The Companhy of Merchants of London trading into the East Indies) que determinam que as amea�as se tenham multiplicado em muitos dos territ�rios sob dom�nio ou influ�ncia lusa, seja por m�o dos safavias, dos senhores de Golconda e Ikkeri, do rei birman�s ou dos Tokugawa japoneses. Igual para Ternate, onde os portugueses haviam sido banidos muito antes deste tempo, para o Ach�m, em rela��o ao qual existia uma distens�o aparente, para Joore, que t�o-s� esperava a sua hora para suplantar Malaca, e para Bant�o, h� muito desligado da tutela portuguesa[71]. Diga-se o que se disser, tais presen�as voltam a n�o ser fortes o bastante para antecipar em dois s�culos em rela��o � sua real ocorr�ncia o fim da �idade da colabora��o� de que fala Michael N. Pearson[72].

Os chineses

Neste per�odo de transi��o com o qual encerramos a nossa an�lise importa come�ar por referir os movimentos dos comerciantes chineses no quadro geogr�fico do Este o do Sudeste asi�ticos. Aqui, o primeiro aspecto a ter em conta respeita aos efeitos do decl�nio din�stico dos Ming. Sem se viver ainda a fase conturbada de afirma��o do Imp�rio Manchu, reconhecida por s� em meados da d�cada de 1680 ter conseguido estender a sua autoridade ao Sul do territ�rio, e de, por isso, ter sido incapaz durante todo esse interregno de p�r cobro a fen�menos generalizados de pirataria e contrabando, sabemos, no entanto, que o controlo oficial sobre as actividades portu�rias estava j� longe de ser o mais rigoroso. � certo que as restri��es decorrentes do sistema tribut�rio inviabilizavam a possibilidade dos portos da China se transformarem em emp�rios, mas era tamb�m claro que os interesses extravasavam a estrita medida das exporta��es de mercadorias chinesas e das entradas devidas a tributos admitidas como poss�veis. Macau continua a ser tacitamente consentida na justa medida em que serve estes esquemas paralelos de com�rcio. Outro tanto � processado atrav�s das col�nias de emigrantes chins que dominam os emp�rios do Sudeste asi�tico ou Manila � em boa medida uma pra�a chinesa orientada para o Fujian �, ou de outros portos importantes para o trato chin�s, como Nagas�qui.

Durante as primeiras duas d�cadas da sua presen�a nos Mares da �sia � indiscut�vel que os holandeses se revelam como os principais perturbadores da ordem e dos equil�brios estabelecidos. Falhado o intento de se fixarem nas costas da China (ataques a Macau em 1604, 1607, 1622 e 1627, todos repelidos), lan�am desde Bat�via uma constante ac��o de desgaste contra o tri�ngulo Cant�o-Macau-Nagas�qui, os circuitos do Zhejiang para o Jap�o e de Fujian para Manila, afectando, por acr�scimo, a intermedia��o chinesa em Manila de v�rios produtos vindos do Sudeste asi�tico ou aquela que os mesmos processavam com destino ao mercado interno chin�s atrav�s dos emp�rios da Tail�ndia, Indochina e do arquip�lago indon�sio. � plaus�vel que estas interfer�ncias tenham acarretado uma redu��o tempor�ria dos abastecimentos de prata para a China provenientes do Jap�o e de Manila, ainda que a este prop�sito seja dif�cil diferenciar o efeito da rapina holandesa da dos piratas chineses e que esteja por contabilizar o montante deste metal que, apesar de tudo, entraria por via de outras fontes alternativas de abastecimento. De qualquer forma, parece certo que a inger�ncia destes contendores Norte-europeus n�o se concretizou tal como os pr�prios o esperariam: ainda que entretanto tenham estabelecido feitorias em Patane e Ayudhya, n�o logram afastar a concorr�ncia dos juncos chineses das respectivas imedia��es, assim como se revelam infrut�feros os diversos intentos de isolar Cant�o do com�rcio mar�timo, neste caso porque os portugueses de Macau n�o hesitam em tomam o partido dessa cidade.

A partir de 1630, momento em que os holandeses come�am a orientar o essencial da sua press�o militar sobre Malaca, n�o apenas se verifica que alteram a sua atitude para com os mercadores chins � ora poupando-os, ora inclusivamente favorecendo-os �, como se assiste a uma retoma do com�rcio realizado no Fujian, aqui em boa parte por os agentes desta prov�ncia se terem sabido aproveitar dos desentendimentos entre tailandeses e japoneses para for�arem novas intermedia��es. Para al�m de tudo isto, Bat�via encoraja as liga��es directas oriundas de Amoy e, apesar de o ter tentado, n�o logra que os chineses se abstenham de frequentar Mac��ar, Jambi (Djambi), Timor, Ligor, Ayudhya, Songkhla ou Patane, nem que os mesmos levem prata de Bat�via por troca com as suas mercadorias. Al�m de Bat�via, Amoy continua a preferir tratar com Manila e os portos do Si�o, enquanto o Guangdong negoceia sobretudo com a Indochina e o Born�u. Todo este renascimento coincide com um refor�o da di�spora chinesa em muitas das cidades portu�rias do Sudeste asi�tico.

O sucedido em rela��o a Malaca ap�s a respectiva conquista, em 1641, testemunha em boa parte tudo isto: apesar de, tal como com os v�rios dos portos enumerados, as autoridades de Bat�via terem come�ado por dificultar a frequ�ncia deste entreposto pelos juncos chineses, para depois a chegarem a proibir (1654), nunca consumam o desejado desvio para o seu porto-sede dos quantitativos que esperavam para cumprir o groet oogmerck � o grande des�gnio � que lhe destinavam porque muitos dos referidos mercadores tentar�o continuar a tratar com tal escala. O mesmo ocorre com Joore, para onde os chineses, restringidos os acessos a esse sultanato rival por um bloqueio naval dos Estreitos que tem como primeiro objectivo banir todo o com�rcio indiano da �rea malaia, se dirigem em desespero de causa, fazendo por superar a precaridade das condi��es oferecidas. Outro ind�cio da import�ncia das comunidades chinesas: a redu��o do trato entre Manila e o Fujian que se verifica a partir de 1640 decorre em primeira linha dos confrontos registados em 1603 e repetidos nesse ano entre as autoridades espanholas e a comunidade de fujianenses na m�o da qual estava boa parte do com�rcio de bens alimentares[73].

Os portugueses

Depois dos chineses, uma palavra para o ajustamento a que foi for�ada a presen�a portuguesa a Leste de Malaca e, em particular, no Extremo Oriente, por efeito combinado das muta��es internas de diferentes conjunturas locais e da ac��o dos holandeses e dos seus aliados.

Aquelas manifesta��es mais s�rias de conflitualidade entre os portugueses de Macau e Nagas�qui e os espanh�is instalados nas Filipinas que a voz das autoridades lusas no Oriente n�o conseguiu debelar, tal como os levantamentos de alguns dos mercadores de uma e de outra parte que da� advieram ou a prolixa actividade regulamentadora da Corte espanhola que as secundou, tem-se a impress�o que apareceram solucionadas no instante do final do s�culo por simples efeito da not�cia da concorr�ncia holandesa e inglesa. A antes referida disputa militar, pol�tica e diplom�tica � praticamente extinta entre a altura da primeira expedi��o holandesa � Insul�ndia (1595), a entrada destes em Java (1597), o deflagrar dos ass�dios peri�dicos a Malaca, Macau e Manila (1600), a conquista de Amboino (1605), o estabelecimento das primeiras feitorias holandesa e inglesa no Jap�o (1609 e 1613, respectivamente), a expuls�o definitiva dos portugueses das Molucas e da ilha de Solor (1616) e a instala��o do quartel-general da VOC em Bat�via (1619)[74]. Com o dom�nio mar�timo ib�rico amea�ado pelo cerco dos protestantes, Macau e de Manila estreitam os la�os econ�micos que as ligavam e os mercadores da cidade portuguesa envolvidos nesses transportes come�am a defender com especial insist�ncia por volta de 1623 a legaliza��o do trato entre os dois portos[75].

Argumentavam a respeito que a Coroa n�o sairia lesada pela ida dos portugueses a Manila porque a dificuldade cr�nica em abastecer com seda os mercados do Jap�o, das Filipinas e da �ndia deixara de ser v�lida pela maior oferta deste produto, sendo que essa seria agora suficiente para os abastecer aos tr�s. Por outro lado, acresciam as �muytas perdas que estes rebeldes [os holandeses] causar�o�, motivo para as dificuldades por que passariam muitos dos comerciantes indo-portugueses dedicados ao com�rcio com a China, desfalcados de novas encomendas da �ndia[76]. S� num aspecto a redac��o em causa se conservava fiel �s suas origens: os mercadores de Macau continuam a pretender para si o monop�lio da seda com Manila, pelo que insistem em alegar que o com�rcio directo dos espanh�is com a China era mais do que indesej�vel. A raz�o de recurso era tamb�m ela antiga ao escolherem referir que a circula��o de reais de ouro que da� resultaria teria como consequ�ncia inevit�vel uma subida insustent�vel dos pre�os das fazendas em Cant�o e Macau. A participa��o portuguesa, concluem, seria particularmente �til num momento em que os navios ingleses e holandeses tentavam curto-circuitar as idas de juncos chineses a Manila, uma manobra que visava desvi�-los para Bat�via, Bant�o e outros portos da sua �rbita, tese em qualquer caso menos capciosa que a anterior porque n�o s� isto era verdade, como a Esquadra de Defesa anglo-holandesa que operava no Mar do Sul da China tinha inscrito como seu outro grande objectivo a captura do gale�o de Acapulco. Enquanto isto, Madrid recebia da parte contr�ria pareceres favor�veis ao com�rcio de Macau com Manila, caso do Memorial que presentam algunos religiosos de Japon a los Consejos de la India y Portugal de el Rey nuestro se�or que residen en corte en Espa�a, assinado a 3 de Mar�o de 1622 por Fr. Diego Collado e por outros religiosos espanh�is do grupo que este que lidera e que tem a seu cargo actividades de espionagem no arquip�lago nip�nico[77].

Com ou sem cobertura da Corte, da autoridade delegada do vice-rei de Goa ou do governo das Filipinas, o facto � que as passagens operadas entre Macau e Manila conseguiriam uma express�o �nica ao longo dos dois primeiros dec�nios do s�culo XVII. Por exemplo, encontram-se contabilizadas cinco partidas no ano de 1604, duas em 1605, uma com �bordados do Jap�o� em 1606, sete com mercadorias e escravos em 1612, cinco em 1620. � parte estas frequ�ncias, o entreposto filipino acolhera entre 1577 e 1599 uma maioria de embarca��es provenientes dos portos do Sul da China � Cant�o, Chinch�u, Fuzhou � num total de 210 unidades que n�o inclu�a as de Macau, mas que nem por isso deixavam de transportar � consigna��o mercadorias dos comerciantes portugueses desta cidade. Esta navega��o entre a China e as Filipinas sofre um aumento apreci�vel no in�cio de Seiscentos, passando-se ent�o para uma m�dia de entradas de cerca de vinte navios/ano, as quais iriam gerar entre 1611 e 1612 um valor m�ximo de 91,5% dos direitos recolhidos pelo Almojarifazgo de Manila[78].�

Acabando at� por contar com a inac��o deliberada de sucessivos vice-reis da �ndia Portuguesa, nem imponder�veis onerosos como os 90.000 pesos do empr�stimo com que o governador das Filipinas for�a aos mercadores de Macau em Manila no ano de 1633 impediu que estes realizassem os seus lucros na campanha em causa. O rei � um aliado incerto porque se chega a sancionar este com�rcio em 1629, recua �s proibi��es por cartas de 14 de Mar�o de 1632 e de 7 de Janeiro de 1633. De qualquer modo, todos parecem dispostos a continuar a ignor�-lo, n�o apenas porque os elevad�ssimos montantes envolvidos neste tr�fego fazem com que n�o se reconhe�am muitos imperativos que levem a que se desista deles, como porque as despesas com a guarni��o e os demais aspectos da defesa de Macau dependem desta qualidade de proventos. No caso de ser tentada tamanha insensatez, como logo algu�m se prontificou a esclarecer, na pior das hip�teses os cantonenses ou os mercadores do Fujian tomariam no dia seguinte o lugar dos portugueses, restando ainda o expediente, n�o menos subterr�neo e imposs�vel de contrariar, de os juncos chineses irem carregar nas ilhas vizinhas e de contarem a� com a coopera��o das gentes de Macau[79].

O assunto do resguardo do com�rcio de Manila ao tr�fego oriundo do porto luso � ponderado na Corte at� 1640 e no governo das Filipinas at� 1642, momento em que se soube no Oriente da restaura��o da independ�ncia de Portugal. Antes disso, 1639 traz consigo o corte das rela��es diplom�ticas entre os portugueses e o Jap�o, pren�ncio da suspens�o irrevers�vel do trato que viria em 1641 e motivo acrescido para que Manila seja vista por Macau como uma alternativa essencial para o fornecimento de prata. As Filipinas continuariam a n�o legislar sobre o com�rcio que os chineses lhes levavam, mas tamb�m n�o impediram novas demandas de navios de Macau, tanto assim que entre 1641 e 1642 os cerca de 16.000 pesos/ano que Manila recolheu do conjunto dessa navega��o corresponderam a metade do seu com�rcio global[80].

Vendo com um pouco mais de detalhe, as compensa��es tentadas atrav�s da expans�o de um circuito de com�rcio j� antes praticado como este das liga��es Macau-Manila determinaram n�o poucas alian�as entre mercadores da primeira dessas cidades e os queves de Cant�o, quer dizer os mercadores comuns. Com a proclama��o da nova dinastia portuguesa, seriam interrompidas por alguns anos as viagens directas entre Macau e Manila, medida de qualquer forma contornada pela parte macaense com v�rias escalas alternativas. Em primeiro lugar em Mac��ar, nas Celebes do Sul, o sultanato onde se sabe que os portugueses iam pelo cravo e a outras especiarias depois do corte ao acesso �s Molucas, resistindo a� aos holandeses at� 1667. � parte isso, esta escala era especialmente importante por permitir atingir o lucrativo com�rcio que se realizava com Larantuca(Flores)-Solor-Timor, o qual assegurava a principal fatia de lucros destes novos esquemas. Em segundo lugar, pela participa��o indirecta de Macau no intenso tr�fego processado entre a China continental e o arquip�lago espanhol, e tanto apesar da penaliza��o imposta pela desloca��o do mercado chin�s que decorre da luta entre os Ming e os Manchus. Em terceiro lugar, com novos interesses na Indochina, aqui em articula��o expl�cita com os jesu�tas: com�rcio com o Vietname (sempre exigente da melhor diplomacia, dadas as guerras frequentes entre o Norte e o Sul), um com�rcio menos interessante com o Cambodja e, por �ltimo, um trato que se revelaria fundamental com o Si�o[81]. As viagens a Manila dos navios provenientes de Mac��ar duram at� 1668, altura em que se restabelece a antiga rota. Depois disso, Macau facilitaria as descargas do com�rcio filipino com uma pol�tica alfandeg�ria que chegou a favorecer os espanh�is na concorr�ncia com os mercadores portugueses � 1,5% de direitos contra 2% �, enquanto que Manila reabria o seu porto impondo taxas de valor duplo aos portugueses por compara��o com as que cobrava aos seus nacionais[82].

Eixo Macau-Manila � parte, atrav�s de interven��es militares em Bant�o em 1598 e 1601 os portugueses buscaram contrariar o avan�o holand�s sobre essas paragens da Insul�ndia ocidental que ent�o parecia impar�vel. As mesmas resultaram num agravamento do quadro anterior por o sultanato em causa lhes ter acabado por vedar o acesso � �rea at� aos anos de 1660. De qualquer modo, e como se sabe, logo depois os holandeses optariam pela Jakarta javanesa porque fracassam todas as suas tentativas para subalternizar esse poder local. Algo de semelhante acontece quando os lusitanos se v�em substitu�dos pelos agentes da VOC na margem oriental do arquip�lago malaio-indon�sio, em concreto nas ilhas das Especiarias. Aqui, apesar da evid�ncia revelar terem tais ilhas transitado para a �rea de influ�ncia dos protestantes, sabemos tamb�m que a eros�o das posi��es portuguesas decorre desde meados do s�culo XVI e que � em grande parte explicada pelas muta��es econ�micas, pol�ticas e sociais internas por que passam v�rios dos min�sculos Estados a� integrados: desde logo, avan�o da islamiza��o e progressiva afirma��o de Ternate como pot�ncia regional, factores que favorecem o aparecimento de sentimentos anti-portugueses em Banda e a eclos�o de revoltas mu�ulmanas em Amboino e nas ilhas de Solor; por outro lado, poderes como o de Ternate deixaram h� muito para tr�s o relativo isolamento em que se encontravam no in�cio do s�culo XVI, tecendo no presente solidariedades v�rias com a Insul�ndia ocidental, casos de Japar� (Java), Joore e Ach�m, as quais lhes permitem antever com outra tranquilidade a substitui��o de Malaca como mercado de destino para as suas produ��es.

Na China e no Jap�o vemos reaparecer um rearranjo da presen�a portuguesa ditado por esta qualidade essencialmente end�gena dos respectivos contextos locais. Se a anarquia generalizada, a ru�na financeira, a desorganiza��o do poder central, a debilidade dos ex�rcitos ou as cumplicidades da gentry chinesa, temerosa das rebeli�es populares, determinaram a f�cil invas�o Manchu, toda a instabilidade vivida nas v�speras dessa ac��o s� podia ter resultado em novas oportunidades para os interesses de Macau. Entre os anos de 1620 e 1640 esta cidade logra o que nunca antes conseguira: ter acesso directo a Pequim. Optando por auxiliar o assediado poder Ming, fornece-lhe tecnologia e especialistas militares. De qualquer forma, o mais surpreendente est� ainda para vir: quando os Manchus decretam a funda��o da nova dinastia, em vez da talvez esperada retalia��o, premeiam Macau, pelo menos nesses primeiros tempos em que o seu poder tarda em se estabelecer em pleno, com uma toler�ncia que, afinal, n�o diferir� muito daquela que dedicam a outros povos �b�rbaros� como eles[83].

No Jap�o a ordem dos factores � a mesma, apesar de aqui esse compasso marcado pelas condi��es internas ter tido consequ�ncias contr�rias. Os portugueses s�o expulsos em 1639-1640, eles que se haviam sabido aproveitar do quadro regional para se consolidarem nos anos de 1540 e 1550 como intermedi�rios entre a China e o arquip�lago nip�nico e a quem a redefini��o das circunst�ncias pr�prias da �rea � no caso, o desenvolvimento da explora��o da prata japonesa � tinha acabado por favorecer uma outra vez ainda, permitindo-lhes pouco depois aceder � gest�o de uma das principais linhas de com�rcio interasi�tico do sistema de concess�es. Exactamente como os r�gulos das Molucas disputaram entre si o desembarque das primeiras naves portugueses, os d�mios de Ky�sh� (Satsuma, Hirado, Bungo, Omura) digladiaram-se por muito tempo para beneficiarem do com�rcio portugu�s. No entanto, o �ltimo quartel do s�culo XVI trouxera consigo o in�cio do processo de unifica��o liderado, sucessivamente, por Oda Nobunaga, Toyotomi Hideyoshi e Tokugawa Ieyasu, com o que a partir de certa altura esta presen�a estrangeira passou a ser olhada mais como um obst�culo e uma amea�a que como o aliado providencial que at� ent�o tinha sido.

De facto, os portugueses, a come�ar pela sua tecnologia militar, revelam-se indispens�veis ao longo de v�rias d�cadas para a boa concretiza��o do processo. Outro tanto acontece com os mission�rios jesu�tas, que aparecem como um instrumento capaz de manter sob a sua influ�ncia alguns dos caudilhos convertidos e sobre quem se pode acenar com a amea�a de deporta��o porque isso mostra ser eficaz quanto baste. Entretanto, Hideyoshi embarcar� nas aventuras navais contra a Coreia (1592), numa clara antecipa��o dos seus projectos a respeito da China. A derrota ter� contribu�do para agudizar as susceptibilidades em rela��o aos estrangeiros que vemos aflorarem em 1596, quando circula a suspeita de que os portugueses e espanh�is estariam conluiados num plano em larga escala que visaria instigar rebeli�es em v�rios territ�rios. � com o terceiro dos referidos �grandes unificadores� que o processo de centraliza��o adquire o seu car�cter definitivo: acentuam-se as diferentes modalidades de vigil�ncia, a come�ar por aquelas que incidem sobre os agentes ligados �s actividades mar�timas; e, em 1614, ao ser decretado o fim da presen�a mission�ria, estava escrito que cedo ou tarde os interesses do com�rcio seriam as v�timas seguintes do bra�o de ferro[84]. A VOC lograr� permanecer no terreno ap�s ter sido decretada a expuls�o dos portugueses, mas a fun��o que se lhe reserva e a capacidade de manobra que conseguir� exercer ser�o marginais, servindo acima de tudo como instrumento dos Tokugawa, que a usam para se manterem informados sobre a realidade exterior, respeitasse esta �s movimenta��es portuguesas ou �s situa��es internas da China e do Imp�rio Mogol, por exemplo[85].

Os ingleses

Antes de passarmos � obrigat�ria descri��o dos avan�os holandeses na �rea que tratamos, uma palavra sobre os feitos da Inglaterra.

Por contraste com a organiza��o que aglutina o essencial do poderio dos adeptos da �verdadeira religi�o crist� reformada�, constitui um dado assente que a EIC n�o apenas parte para o seu esfor�o ultramarino substancialmente descapitalizada, como est� longe de poder assegurar para si uma posi��o t�o vantajosa face aos seus concorrentes nacionais como aquelas que a VOC consegue nos Pa�ses Baixos. Da� que tenha concretizado uma alian�a com os holandeses � mantida entre 1600 e 1635 e da qual os portugueses foram o principal alvo�, que se tenha decidido por uma op��o preferencial pelo �ndico Ocidental e que, uma vez definida esta, tenha escolhido concentrar-se no trato bilateral com a Europa. Contudo, nas duas d�cadas iniciais de Seiscentos nem isso permitiu muito mais do que sustentar triunfos marginais nas costas do Guzerate, onde abrem uma feitoria em Surrate (Imp�rio Mogol), e no Golfo P�rsico, sendo claro que n�o � de um dia para o outro que se consegue destronar a preponder�ncia do Estado da �ndia a Oeste de Malaca.

Aqui, o calcanhar de Aquiles ser� por muitos anos a aus�ncia de uma posi��o no Coromandel, cujos panos s�o mais baratos e mais procurados que os do Guzerate no mercado da �sia do Sudeste onde queriam entrar[86]. O aparecimento do Guzerate, do Coromandel e de Bengala como grandes centros do com�rcio t�xtil ingl�s � uma realidade mais tardia, constat�vel apenas em meados do s�culo XVII, numa altura em que se torna frequente observar incurs�es simult�neas no com�rcio interasi�tico lideradas por privados da mesma nacionalidade, os quais tiram para tanto partido de associa��es com grupos mercantis regionais, fosse com mu�ulmanos do Coromandel ou com os pasirs da costa ocidental indiana. No Extremo Oriente, a Companhia Inglesa s� se encontrar� em condi��es de superar a VOC no que respeita ao tr�fico entre a Europa e a �sia nas d�cadas de 1680 e 1690. Igual substitui��o, agora no que toca ao com�rcio interasi�tico, ocorre apenas depois de 1700 e acontece sempre sob lideran�a dos interesses privados, pelo que escapou em boa parte ao mecanismo das Companhias e foi estranha ao exerc�cio de pr�ticas comerciais assentes em grandes monop�lios[87].

� em fun��o deste estado de coisas que se entende a presen�a mitigada que os ingleses revelam no per�odo em apre�o, tanto na Insul�ndia como no Sudeste asi�tico continental e no Extremo Oriente. Em 1602 celebram um acordo comercial com o Ach�m, mas, apesar disso, abst�m-se no imediato de perspectivar a conquista de Malaca. Na margem oriental deste espa�o, parecem contentar-se com a oferta de especiarias que lhes � concedida atrav�s da feitoria que mant�m aberta em Mac��ar entre 1613 e 1667, a qual nunca seria suficiente para executar os respectivos monop�lios. A feitoria de Jambi, operacional entre 1615 e 1679 e, sobretudo a de Bant�o (1602-1682), sede da EIC no Sudeste asi�tico, asseguram o abastecimento da pimenta do Sul de Samatra, de novo sem garantir qualquer hip�tese de controlo monopol�stico do produto em causa. Como os holandeses, logram desde cedo uma aproxima��o a Ayudhya e Patane, mas a influ�ncia real sobre a corte siamesa s� acontece no termo do s�culo, de resto na mesma altura em que se estabelecem em Tonquim. Quanto � feitoria de Hirado, somente opera entre 1613 e 1623, encerrando cerca de uma d�cada antes das tentativas que levam a cabo em 1635 e 1637 para se implantarem no Guangdong (Cant�o)[88]. ���������

A EIA aparecera, n�o apenas na sequ�ncia de uma insistente press�o de privados, como depois de consumada toda uma s�rie de viagens de reconhecimento e corso em que pontificam os nomes de Francis Drake (viagem de circum-navega��o em 1577-1580), Thomas Cavendish (viagem de circum-navega��o em 1586-1588) e Walter Raleigh (subida do Orinoco em 1595). Contribuiriam para a sua cria��o o sucesso antes verificado com a Muscovy Company (estabelecida em 1555 e que deteria o monop�lio do com�rio ingl�s com a R�ssia) e com a Levant Company (institu�da em 1581 em fun��o dos interesses ingleses no M�dio Oriente). Os privil�gios que lhe s�o concedidos � partida contemplam o monop�lio de todo o com�rcio entre a Inglaterra e o Oriente e prev�em o funcionamento de uma estrutura financeira baseada no conceito de mercado de ac��es e n�o no conceito medieval de regula��o de com�rcio entre parceiros, algo que os venezianos e os holandeses tinham adoptado pontualmente como forma de limitar os riscos de opera��es conduzidas a longa dist�ncia. Por�m, entre 1601 e 1613, per�odo ao longo do qual decorreram as doze primeiras viagens, estas foram ainda processadas de acordo com o velho sistema que fazia depender o investimento em cada nova viagem do resultado da anterior, sendo s� a partir de 1657 que a Companhia se abalan�a a funcionar com recurso ilimitado aos capitais empatados, sem depender para tanto do resultado de uma qualquer opera��o individual[89].

Se te�ricos como William Welwood � An Abbridgment of All the Sea-Lawes (1613) � ou John Selden �� Mare clausum (1636) � podiam advogar que o mar cabia por direito � expans�o e ao neg�cio ingleses, na pr�tica sabemos que a escassez de recursos pr�prios aconselhava, sen�o a que se subscrevesse a tese do Mare Liberum, pelo menos a que por enquanto se optasse por associa��es com os calvinistas seus defensores inveterados ou com os poderes locais que aparecessem mais dispon�veis para acordar parcerias formais. A prop�sito destes �ltimos casos, not�mos o ocorrido em Bant�o, no Ach�m e em Hirado, mas a forma de implanta��o de feitorias que a� se d�, visando interceptar as linhas tradicionais do com�rcio regional e inter-regional e conceder em simult�neo um acesso privilegiado aos mercados europeus, reaparece-nos em Mascate (Om�) ou em Masulipat�o (Golconda). A demonstra��o de for�a que representaram as derrotas impostas aos portugueses ao largo de Surrate em 1613 e em 1615 facilitam o consentimento dos mog�is � abertura da dita feitoria local, mas j� para conseguirem a expuls�o dos portugueses de Ormuz, em 1622, os ingleses tiveram de recorrer a uma coliga��o no terreno com as for�as persas. No mesmo ano em que eram afastados de Hirado, sofriam uma humilha��o imposta pelo comandante holand�s de Amboino � o c�lebre �massacre� que leva o mesmo nome � de que resultou a decis�o de se interromper a actividade da Companhia Inglesa nas Molucas e nas ilhas de Banda[90].�

Os holandeses

A Verenigde Oost-Indische Compagnie, fundada dois anos depois da sua cong�nere inglesa, sete anos ap�s o ensaio que representou a cria��o da Compagnie van Verre (Companhia da Dist�ncia ou das Terras Long�nquas) e associando � nascen�a nove companhias por ac��es, tratar�, por tudo o que foi dito, de se constituir como a principal amea�a �s posi��es detidas pelos portugueses no Oriente. Lisboa pressente o que poder� suceder � coloca��o dos seus produtos nos mercados europeus quando se d� a captura de Antu�rpia pelos espanh�is (1559) e o bloqueio do rio Scheldt por capit�es holandeses (1569). Seguir-se-� a guerra de corso, a qual culmina com o decl�nio irrevers�vel dos mercados tradicionais do Sul da Flandres: Antu�rpia n�o saiu arruinada do bloqueio, tal como prossegue o com�rcio entre a cidade flamenga e Portugal (e a Espanha), mas estava definida a nova divis�o da vida econ�mica, com um Sul lealista que perdia e um Norte que ascende sob impulso da Holanda e da Zel�ndia. Portugal investe daqui em diante numa aproxima��o �s revoltosas Prov�ncias Unidas do Norte, sempre a pensar na coloca��o dos seus produtos, entre os quais o sal cresce em import�ncia. Quando Filipe II reina, em 1585, 1595, 1598 e 1605 repetem-se as proibi��es de holandeses e ingleses acederem aos portos portugueses porque se sup�e realiz�vel a asfixia dos Pa�ses Baixos. Porventura, o c�lculo ser� mais irrealista ainda que aquele que considerava exequ�vel a invas�o da Inglaterra, uma vez que desde a quinta d�cada do s�culo os seus banqueiros e mercadores v�m demonstrando que disp�em, como ningu�m, das capacidades para gerir financeira e comercialmente a �economia-mundo� entretanto posta em funcionamento.

A revolu��o nacional que acompanha todo o processo oferece a coes�o que falta para que esta ambi��o se concretize. O salto dado por Amesterd�o a partir de 1590 confirma-o. A beneficiar de forma cumulativa dos efeitos da sua integra��o hist�rica no sistema comercial do Imp�rio Espanhol, basta-lhes muito menos que a outros potenciais rivais, como os ingleses, para que se permitam e se decidam a ir buscar � fonte boa parte desses produtos coloniais com os quais estavam t�o familiarizados[91]. No que � �sia diz respeito, em 1595 temos que Cornelis van Houtman come�a por garantir um acordo comercial com o rei de Bant�o. Como os ingleses, mas com outro sucesso, os holandeses irrompem naquelas partes perif�ricas da talassocracia lusa que se revelavam particularmente vulner�veis, vindo a assentar na Insul�ndia, como repetimos. A pimenta fazia antever a viabilidade da op��o, ao mesmo tempo que esta regi�o se manifestava como a mais fr�gil de todas essas partes porque apenas protegida por uma grande fortaleza, em Malaca, e por um pequeno contingente estacionado nas Molucas.

Conhecemos os passos determinantes deste cerco, do qual o estrangulamento da circula��o entre Goa e o Extremo Oriente representavam a outra face da mesma moeda, passos que, por outro lado, reproduzem em boa medida a experi�ncia portuguesa: tentativa de dom�nio dos mares, portos, fortalezas e feitorias, seguida de uma penetra��o nas linhas de com�rcio interasi�tico, aquelas que o estratega da empresa, Jan Pieterszoon Coen, calculou em 1614 que bastariam para financiar as cargas de retorno para a Europa, o que veio a dar na rede apoiada nos centros que eram as ilhas das Especiarias, o Jap�o, a costa Norte de Java e a �ndia; numa terceira fase, lan�ada sobretudo na segunda metade da cent�ria, op��o clara pelo dom�nio territorial, da qual Java foi das primeiras provas. A analogia com o exemplo dos portugueses rever-se-ia ainda na persistente incapacidade holandesa em conseguir uma posi��o de supremacia nos tratos que corriam entre a �ndia e o Golfo P�rsico e o Mar Vermelho[92].

Os holandeses est�o em Hirado em 1609. Permanecem no Jap�o aquando da sa�da dos portugueses no final da d�cada de 1630, como acabamos de referir. Depois de repetirem por v�rias vezes a tentativa de assalto a Macau, transitam pelas ilhas Pescadores, at� passarem da� para a Formosa, onde se fortificam at� 1662. Ap�s terem atingido os alvos inaugurais na �sia do Sudeste peninsular que foram Patane e Ayudhya, na primeira d�cada do s�culo, tardam mais de vinte anos mas acabam por celebrar com a feitoria de Faifo um avan�o importante na Cochinchina (1637). Esse ano foi o mesmo em que se estabeleceram em Tonquim. Para a Insul�ndia oriental, temos a conhecida sucess�o dada pelo dom�nio de Amboino (1605), pelo desembarque em Ternate e Tidore (tamb�m em 1605), pelo ataque de 1613 a Solor (tr�s anos antes de ocorrer a expuls�o dos portugueses), pela funda��o de Bat�via (1619, que substitui Bant�o como principal entreposto holand�s no Oriente), pela consuma��o do dom�nio das ilhas de Banda (1623) e pelo ataque a Cup�o (Kupang, Timor, 1652). As feitorias de Jambi, Sukadana (Born�u) e Mac��ar completam este circuito. Na margem ocidental desse espa�o, e fora a feitoria criada em Samatra no in�cio do s�culo, o Estreito de Malaca est� assinalado desde o princ�pio entre as prioridades, por suceder a relativa excentricidade de Bat�via em rela��o ao mesmo e a capacidade de interfer�ncia que o basti�o portugu�s continua a deter sobre o tr�nsito holand�s que corre entre a �ndia e o Oriente. A influ�ncia que conseguem exercer sobre o Ach�m e Joore � utilizada para minar o poderio de Malaca, a qual � cercada em 1606, depois por v�rias vezes entre 1623 e 1627, com outra determina��o na d�cada de 1630, caindo, enfim, para os holandeses em 1641, como dito[93].

O avan�o consuma-se em Ceil�o em 1656, ocorrendo igual com o Malabar, em 1663 (perda de Cochim), se bem que a dificuldade que aqui se percebe deva ser matizada pois muito antes disso j� controlam com efic�cia a navega��o na zona. O momento � agora outro e decorre em linha directa dos receios que a VOC come�a a sentir a partir do in�cio dos anos de 1630 com a concorr�ncia comercial e pol�tica da Companhia Inglesa e dos magros resultados que somavam no cen�rio sino-nip�nico[94]. Nas costas da China, Macau resiste �s sucessivas investidas e no Jap�o os poderes internos vedam � Companhia holandesa quaisquer possibilidades de estender o seu com�rcio para Norte. Sem a desejada concentra��o dos neg�cios nos Mares da China, o trato das Molucas revelava-se insuficiente para as suas aspira��es, da� que o subcontinente indiano acabe por aparecer depois de meados dessa d�cada como a alternativa que muito provavelmente n�o se pensou na primeira hora que poderia vir a ser � em concreto, depois de 1636, ano em que cercam Malaca e bloqueiam Goa, na expectativa de impedirem a sa�da de quaisquer refor�os. A cabe�a do Estado da �ndia resistir� ao bloqueio naval mantido at� 1644, sendo que �s naus holandesas que o executam se junta o cerco terrestre de 40.000 homens do Adil-Kan[95]. Cerca de dois anos passados, programam ao detalhe as opera��es em Ceil�o, onde n�o tardam em celebrar uma alian�a anti-portuguesa com o rei de C�ndi[96].

Quanto ao desfasamento acabado de referir, � certo que o capit�o Jacob Pietersz visita em 1603 a costa do Coromandel em representa��o de uma das pr�-companhias (voorcompagnie�n) fundadoras da VOC com o mais do que prov�vel intuito de sondar a oferta t�xtil. � certo que t�o cedo quanto 1605 s�o disponibilizados meios para implantar uma feitoria em Masulipat�o e que outro tanto � feito em 1607 visando Paleacate. � certo que s�o bem sucedidos em ambas as posi��es, ainda que os portugueses desencadeiem em 1612, 1614 e 1620 a partir de S�o Tom� de Meliapor tr�s ataques, os primeiros dos quais ainda lhes destr�i as fortifica��es do segundo destes estabelecimentos. Em 1610, pela mesma altura em que abriam essas duas posi��es, inauguravam tamb�m as feitorias de Teganapat�o (Tegenapatam) e Petapuli. Antes que termine a d�cada de 1620, as partes do Coromandel s�o elevadas � categoria de governo, equivalente a uma �rea como a das ilhas das Especiarias, tendo Paleacate como centro administrativo do respectivo directie. Continua a ser certo que, pelo menos at� 1616, altura em que passa a ser utilizada a nova rota do Sul que une directamente a Indon�sia ao Cabo da Boa Esperan�a, eram regulares os percursos que se faziam ao largo da costa indiana, tocavam ocasionalmente Ceil�o e se dirigiam para o Arquip�lago, estando por detr�s de tudo isto os interesses pelo com�rcio dos algod�es, aos quais o mercado das especiarias, menos monetarizado que o indiano, � mais receptivo que em rela��o � prata ou ao ouro (para a Europa, o Coromandel holand�s pouco mais exporta que �ndigo).

Contudo, estes acessos pioneiros ao Coromandel, tal como a toda a regi�o a Oeste de Malaca (nota para a sucess�o de feitorias do Guzerate, que se inicia em Surrate na peugada dos ingleses, continua em Broach/Bharuch, Baroda, Cambaia e Ahmedabad/Ahmad�b�d e se estende ao interior, a Burhanpur e Agra), s�o percebidos como complementares e encontram-se subordinados aos interesses da Companhia na Indon�sia e nos Mares da China, sobretudo desde que acontece a funda��o de Bat�via. D�o-se recuos, como com o enceramento da feitoria de Petapuli, em 1616, se bem que esta seja substitu�da por outra, em Tirupapaliyur. E tal como n�o se aceita ainda dar cobertura (at� 1638-1639) �s iniciativas militares entretanto desencadeadas por alguns holandeses em Ceil�o, nem no Coromandel nem no Malabar � por enquanto perspectivada a inten��o de remover pela for�a a presen�a portuguesa[97].

Ainda antes das alternativas buscadas na segunda metade dos anos de 1630 para compensar as perdas a Oriente, constata-se tamb�m uma penetra��o da Companhia na regi�o de Bengala, a qual, como o Guzerate, depende do consentimento t�cito da Corte Mogol. Tendo estes obrigado � evacua��o da comunidade portuguesa residente em Ugulim, em 1632, acordam em garantir aos holandeses tanto uma presen�a nos arredores desta posi��o central, em Chinsura, como em Dacca, Patna e Kazimbazar. Como no Coromandel at� a�, este assentamento �, pelo geral, processado sem demasiado esfor�o e risco, o que de novo serve para atestar o interesse marginal pela �rea e a aus�ncia de uma ambi��o hegem�nica em rela��o � mesma. A situa��o s� ser� alterada quando se esgotarem todas as armas de recurso entretanto tentadas nos espa�os priorit�rios, acima de tudo com a inten��o de dobrar a China: tomar Macau, como se repetiu, assolar as costas chinesas com ataques consecutivos e intimidar a partir do arquip�lago dos Pescadores e da Formosa.

Chegar-se-� a conseguir desviar algum com�rcio para esta �ltima ilha, mas tanto acontece que as autoridades chinesas o mant�m sob controlo, como este se salda sempre muito abaixo do n�vel considerado satisfat�rio. Como se isso n�o bastasse, os holandeses cedo s�o for�ados a reconhecer que os japoneses n�o permitem que se ataque a navega��o portuguesa que ainda corre entre a China e o seu arquip�lago. A derradeira hip�tese de salvar a Formosa holandesa da marginalidade econ�mica estaria agora em interceptar o trato ilegal entre a China e o Jap�o que ela acolhia, mas aqui s�o n�o apenas os japoneses, mas tamb�m os chineses, quem se op�e � manobra e � inten��o monopolista que escondia: os primeiros t�m gente, como o governador de Nagas�qui, directamente envolvida nesta navega��o, e os segundos servem-se da ilha para contornar o imperativo legal que pro�be o com�rcio directo entre as terras do imperador e as terras do x�gum[98].

Se a estrat�gia da VOC (e, por acr�scimo, tamb�m a dos ingleses), ainda que sujeita a ajustes como aqueles que a desastrada subestima��o da capacidade chinesa determinou, persegue de muito perto a experi�ncia consolidada do Estado Portugu�s da �ndia, outro tanto n�o pode ser dito a respeito de muitos dos m�todos aplicados. Parte por m�rito pr�prio, parte porque a capacidade de reac��o portuguesa est� irremediavelmente comprometida pelo anquilosamento do pesado sistema em que se apoiava no Oriente, temos neste ponto uma diverg�ncia de fundo, da qual resultou boa parte do sucesso dos rec�m-chegados.

Desde logo, � preciso referir que entre os protestantes n�o se perspectivava qualquer inten��o mission�ria. Os portugueses tinham tirado bastas vezes partido da dupla com�rcio-apostolado, vejam-se os casos da Eti�pia, das ilhas de Sunda, do Jap�o e da China, semelhantes ao ocorrido na P�rsia ou no Tibete, mas tamb�m foram prejudicados com tal duplicidade de interesses, n�o s� porque esta gerara uma pesada estrutura eclesi�stica, como porque instigara as desconfian�as de v�rios poderes locais, conforme o conhecido sobre o Jap�o. Em segundo lugar, os planeadores das Companhias comerciais do Norte da Europa n�o encaravam como objectivo o enraizamento dos seus agentes nos locais onde estes operavam. Terminado o per�odo de servi�o, a regra era a de que fossem revezados por novos efectivos procedentes da metr�pole, o que obstava � generalidade dos v�cios suscitados pelas estadas prolongadas que muitos naturais lusos realizavam al�m-Cabo.

A estas diferen�as fundamentais de m�todo, devem juntar-se as vantagens que decorrem para o sistema de funcionamento da VOC do facto desta ser apoiada por uma base accionista alargada, de assegurar uma redistribui��o dos dividendos gerados que, em qualquer caso, ultrapassa as melhores expectativas que a Coroa portuguesa ou os seus parceiros comerciais podiam recolher, e, por �ltimo, de possuir uma capacidade de manobra naval e um poder de fogo que os mais insuspeitos observadores de �poca n�o hesitam em confrontar com as insufici�ncias, a inabilidade, a indisciplina e o improviso sentidos a bordo de muitos dos navios portugueses � mas tamb�m espanh�is, franceses e italianos[99]. Passe estes contrastes organizativos, diga-se que pouco mais distingue holandeses (e ingleses) da experi�ncia dos seus rivais portugueses (ou espanh�is): nuns como noutros, recurso indistinto ao saque, ao corso, � extors�o de tributos ou � pr�tica de cartazes� (uma das poucas diverg�ncias ser� aqui a de que os holandeses chamam os seus de pascedullen)[100], manuten��o de feitorias deficit�rias sempre que interesses particulares de funcion�rios ou interesses pol�ticos assim o determinam, restri��o do livre acesso aos mercados e tentativa de monopoliza��o de rotas mar�timas fulcrais, ou, ainda, o desenvolvimento de ambi��es territoriais[101].

Para afirmar isto quase bastava conhecer um dos princ�pios que a Companhia Holandesa das �ndias Orientais fazia seus e segundo o qual nem direito, nem justi�a, nem considera��es humanit�rias se sobreporiam, em caso algum, aos respectivos interesses vitais. Encontramo-lo plasmado nas autoriza��es que os Estados Gerais concedem � VOC na respectiva carta de constitui��o, nada compat�veis com a ideia que hoje fazemos de uma empresa privada, antes t�picas de uma forma de organiza��o quase-estatal ou de proteccionismo na forma de com�rcio de Estado. A� delegava-se na Companhia o monop�lio da navega��o e do com�rcio holand�s a Leste do Cabo da Boa Esperan�a e a Oeste da Estreito de Magalh�es durante um per�odo de vinte e um anos (o qual seria renovado consecutivamente), estando esta autorizada a desenvolver a guerra defensiva, a celebrar tratados de paz e amizade, a construir fortifica��es e a recrutar pessoal civil, naval e militar sob juramento de fidelidade, a si e aos Estados Gerais.

O desempate dava-o uma for�a naval que, logo em 1608, contava com quarenta navios e cinco mil homens na �sia, vinte navios e quatrocentos homens na costa da Guin� e cem navios e mil e oitocentos homens nas �ndias Ocidentais[102]. Ainda que salvaguardando aspectos como a comparativamente superior capacidade de carga das carracas portuguesas do per�odo da transi��o do s�culo e descontando o poder operacional dos navios das armadas do Estado da �ndia ou daqueles envolvidos no trato interasi�tico, o ritmo de partidas de navios sob pavilh�o holand�s batia de longe e sempre em crescendo o das sa�das de Portugal: cerca de dez navios/ano entre 1602 e 1625, contra seis-sete navios/ano no primeiro ter�o do s�culo XVII; depois de 1625, cerca de vinte e dois navios holandeses/ano, contra cerca de tr�s-quatro navios portugueses/ano p�s-1630[103].

Na lembran�a do jesu�ta portugu�s Manuel Godinho (1633-1712) � que, como tantos outros no seu tempo, gostava de se servir de L�cio Floro �, chegava ao fim a terceira das quatro idades de um Estado da �ndia feito homem, a sua �idade varonil�, �perfeita�, ou a sua �flor dos anos�[104].

Balan�o em aberto

Todos sabemos que os �tempos estruturais� da pol�tica, da economia, da finan�a, da demografia ou da cultura � esses mesmos tempos que se rev�em nos fen�menos de longa dura��o � t�m o h�bito de se desencontrar entre si, inviabilizando compartimenta��es tranquilas da hist�ria dos homens. Seja como for, a d�cada de 1640 corresponde a um momento em que as interfer�ncias holandesa e inglesa j� faziam adivinhar consequ�ncias irrecuper�veis para o nervo econ�mico do Estado Portugu�s da �ndia. No entender de alguns � � cabe�a dos quais esteve Charles Boxer �, o Estado da �ndia ainda conseguiria suportar a crise at� meados do s�culo XVII, s� que nem sequer na hip�tese desta interpreta��o ser v�lida cremos que o horizonte cronol�gico que adopt�mos perca a coer�ncia essencial que nele julgamos haver encontrado[105].

Se sob o estrito prisma da cronologia podemos encerrar o texto sem demasiados problemas a atrapalhar-nos, outro tanto n�o nos atrevemos a dizer a prop�sito de um sem-n�mero de simplifica��es a que nos obrigaram, quer o esfor�o de s�ntese, quer a falta de estudos sobre mat�rias de que apenas hoje se come�a a ter uma consci�ncia mais n�tida. Estando fora de quest�o desenvolver tal lista, encerramos com dois exemplos que pensamos serem representativos do que est� em causa.

Estaremos conscientes do facto de nenhuma dicotomia �cl�ssica� do tipo interesses oficiais ou da Corte vs. interesses particulares poder ser lida de forma linear ou est�tica. Na verdade, trata-se de algo que o dom�nio filipino, por exemplo, parece ter esbatido. � que nessa altura, enquanto se v� que o Estado, sentindo a necessidade de legitimar um poder rec�m-adquirido, cede a reclama��es dos casados e regulariza situa��es esdr�xulas como a de Meliapor, muitos destes buscam a protec��o do dito Estado de modo a refor�ar as suas pr�prias possibilidades de sobreviv�ncia diante da amea�a holandesa e inglesa[106].

Ainda a prop�sito desta necessidade de um tratamento mais fino dos grupos de interesse identificados no terreno, evocamos o caso dos mercadores chineses e das comunidades mercantis europeias que operavam � ou que come�avam a operar � na �sia do Sueste e no Mar da China na transi��o do s�culo XVI para o s�culo XVII, as quais n�o s� foram apresentadas como realidades relativamente estanques entre si, como mais do que nada homog�neas. Ora, conhecem-se situa��es como a do aproveitamento que a di�spora oriunda do Fujian fazia de v�rias das redes estabelecidas de antem�o pelos portugueses na �rea de modo a penetrar nos mercados a que estes tinham acesso, como o cantonense ou o japon�s. Conhece-se o papel jogado pelos chineses no estabelecimento dos holandeses na Formosa, assim como na sua sa�da da�. Conhece-se que o desenvolvimento do trato dos portugueses no Jap�o acontece num momento de expans�o tanto do com�rcio privado, como do com�rcio oficial japon�s, cruzando-se os interesses de todos eles, de resto como os interesses financeiros chineses cruzam boa parte do com�rcio mar�timo nip�nico que se realizava com o salvo-conduto dos x�guns. Enfim, conhecem-se rivalidades entre redes de crist�os-novos e outras redes portuguesas ou luso-asi�ticas pelo acesso aos mercados da mesma �rea[107].

Ao inv�s do que indicam muitas das fontes de �poca, nada parece ter sido assim t�o simples. Quando se pensava haver solucionado boa parte dos quadros em presen�a e dos contenciosos arrumando os protagonistas por fac��es � nacionais ou quaisquer outras �, eis que as solidariedades adquirem contornos insuspeitos e vai ganhando forma a imagem de uma profunda mesti�agem de grupos humanos e de uma complexa (e vol�vel) imbrica��o de alian�as. Tentar esclarecer quest�es como esta exige esfor�o, mas � certamente um dos mais interessantes desafios que temos por diante.