A construção dos santos populares

A construção dos santos populares

De forma a celebrar a época que se avizinha dedicada aos Santos Populares, o Museu de Arte Sacra do Funchal criou um desafio e pretende a sua articulação com as crianças da paróquia e da catequese, por isso apelamos ao seu incentivo à participação e divulgação.

Este desafio está patente nas páginas do Facebook e do Instagram do museu.

UM TRONO PARA OS SANTOS POPULARES. Um desafio educativo.

Público alvo: crianças e jovens - 8 aos 18.Estamos no início de junho, o mês dedicado aos Santos Populares: Santo António (13 de junho), São João (24 de junho) e São Pedro (29 de junho).Seguindo a tradição nacional portuguesa, é muito comum festejar estes santos nas Ilhas da Madeira e do Porto Santo, envolvendo várias tradições e relações diversas com a arte e o património!

O museu também pretende celebrar os seus santos e para isso conta com a tua ajuda na realização de um desafio: vamos construir um trono para os santos populares!

Enquadramento:

Um trono, na sua essência, é uma construção que procura sublinhar a importância de uma determinada figura, elevando-a até um patamar mais elevado. No Natal madeirense, ou algarvio, o Menino Jesus, por exemplo, costuma ser colocado no topo de uma estrutura em forma de pirâmide com degraus muito decorados com elementos simbólicos, funcionando, assim, como um trono ou altar que celebra a importância espiritual da figura elevada e engrandece a sua devoção. Os santos populares, por seu turno, também costumam ser entronizados nas respetivas festividades cíclicas, tanto no espaço doméstico, como no espaço público. Em Lisboa, por exemplo, as construções dos altares de Santo António remontam ao período pós-terramoto de 1755 e foram motivados pela vontade popular na reconstrução da igreja de invocação ao santo. Estes altares costumavam ser feitos de madeira ou caixas de cartão, colocados em cima de bancos ou pequenas mesas, aproveitando materiais de uso corrente para as decorações. Nos tronos mais pobres as imagens eram de papel, recortadas de estampas ou de "Santinhos" (pagelas). A imagem de Santo António daria depois lugar à de São João, e depois à de São Pedro consoante o dia do santo celebrado. Os tronos mais apreciados seriam aqueles que conseguiam fazer a ligação entre os episódios da vida do santo relacionados com os seus milagres mais conhecidos, ou com as tradições populares a ele associadas, os manjericos, as quadras ou as sardinhas.

Veja as ilustrações completas em:

https://drive.google.com/file/d/1CcAuPv7SOjqhJpb9JntORYzn38IU5kMa/view?fbclid=IwAR0M5YdlGZu9Px5M_2isw8VWuXb56o8HWTHttpwD7f6g9WJGIJ4R81aiVlU

1A ideia de que as nossas experiências do presente dependem, em grande medida, do conhecimento que temos do passado e (de que) as nossas imagens do passado servem, normalmente, para legitimar a ordem social presente (Connerton, 1993: 4) aplica-se particularmente às festas dos Santos Populares em Lisboa. A história que destas festas tem sido esboçada tem tido como objectivo principal legitimar ou condenar a ordem social presente, sempre demasiado impregnada de juízos ideológicos e vontades políticas.

2Num dos raros textos existentes sobre estas festas, Ruben de Carvalho insiste na vertente essencialmente popular do seu núcleo festivo – arraiais, marchas e iniciativas correlativas –, perguntando-se sobre a sua real autenticidade: Esta vertente popular bebe a sua origem e razão de ser na efectiva realidade que é Lisboa e o seu povo ou, como se insinua inevitavelmente na consciência de todos nós, há nelas uma matriz fascista enraizada no figurino criado na década de 30? (1991:26).

3Incidindo sobretudo sobre o fenómeno marcha – aquele que maior curiosidade tem suscitado – a questão pretende resolver um dilema, muito comum nos trabalhos que tomam a cultura popular por objecto: haveria, em Lisboa, uma tradição de marchas anterior a essa década de 30, que apenas fora recuperada pela acção propagandística do salazarismo, ou essa tradição teria sido inventada pela ditadura? Após uma caracterização da vertente popular destas festas, que incluiria três elementos centrais – desfile das marchas, arraiais (tronos, janelas enfeitadas, etc.) e uma intervenção reguladora, subsidiadora, promotora, da Câmara Municipal de Lisboa o que leva legitimamente a colocar a dúvida sobre se essa acção é ou não determinante na própria existência das manifestações que dão corpo às festas (28) –, o autor faz um historial a partir dos fatídicos anos 30, momento em que o actual figurino foi lançado. Por não se encontrar qualquer referência consistente ao retomar de uma tradição, antes o anúncio de uma novidade, conclui não corresponderem as marchas a qualquer tradição popular mas sim à criação lúdica de um genial criador de um espectáculo, Leitão de Barros. No entanto reconhece que esta novidade vingou por ser a recriação, a reorganização de um conjunto de culturemas pré-existentes: o período festivo entre Santo António e São Pedro, um desfile-cortejo de componente teatral, a publicitação de uma diferenciação bairrista da capital... Que não só vingou, como acabou por ser apropriada pelo povo que impôs o prosseguimento da iniciativa.

Seja por características socioculturais efectivamente ligadas à realidade festiva popular e urbana, seja pela importância que assumiram no tecido das relações sociais internas dos bairros populares, da vida das colectividades de cultura e recreio e nas relações com o Município com estas realidades, as marchas populares de Lisboa tornaram-se numa realidade efectivamente patrimonial da cultura popular de Lisboa que ultrapassou os estigmas de intencionalidade propagandística do fascismo que terão estado na sua origem... (ob. cit.: 45-46).

4As questões levantadas neste texto inspiraram a procura de um conhecimento sobre o passado recente das festas dos Santos Populares em Lisboa, de certa forma menos «descomprometido». O facto de já existir uma ficção historicizada sobre estas festas, institucionalizada nos anos 30 e retomada nalguns textos, impôs alguns cuidados metodológicos.

5Por um lado, foi escolhida uma das raras fontes escritas disponíveis como testemunho próximo do quotidiano de uma cidade – a imprensa diária. Por outro lado, foram claramente privilegiadas épocas o mais recuadas possíveis em relação a esta década de charneira, o que implicou o alargamento do período em análise praticamente até ao início do aparecimento da imprensa periódica em Portugal: anos 80 do século passado. Embora o tipo e qualidade dos dados assim acumulados reflectissem um óbvio desequilíbrio, esta pareceu ser a forma mais correcta de procurar informação nova sobre um assunto, ao mesmo tempo tão desconhecido e tão contaminado ideologicamente.

6A interpretação livre a que a análise deste material conduziu, forçosamente fragmentar e incompleta, seguiu algumas linhas de força temáticas, capazes de contribuir para a análise cultural de uma cidade – como por exemplo, a divisão do trabalho como um eixo estruturante na construção da identidade de uma cidade a partir da visibilidade de certos grupos étnico-profissionais, ou o papel de uma festa-espectáculo, conjugadora do poder de uma cidade e da sua massa urbana, enquanto parte de um processo complexo de construção cultural de uma cidade.

7De um modo geral, foram considerados dois grandes períodos na análise desta imensa massa de informação correspondente a mais de cem anos de notícias, com uma fronteira em torno da sua institucionalização que se consumou, definitivamente, nos anos 30 do presente século. Situou-se, assim, um primeiro período entre o último quartel do século passado (data em que se iniciou a pesquisa e que coincide com a estabilização da imprensa periódica) e 1932, data em que se «oficializou» o modelo festivo dos Santos Populares; e um segundo período, desde 1932 até à actualidade, abrangendo os anos da ditadura fascista e o renascimento das marchas populares que, nos anos 80, revelaram ter sobrevivido.

8No entanto, uma periodização mais fina, capaz de ilustrar algumas transformações foi ensaiada. Inspirando-se na periodização que tem sido feita para a análise da evolução de um canto popular urbano – o fado (Brito 1984, 1991; Damianakos, 1974) – a sistematização feita sobre a fonte analisada teve como objectivo, por um lado, respeitar algumas nuances que se impuseram após a sua análise intensiva, e, por outro, apresentar as linhas gerais da evolução destes festejos, desde finais do século xix até à actualidade, resumindo alguns aspectos, como se verá adiante1.

9A permanência que certos rituais festivos têm registado nalguns bairros de Lisboa, testemunham a existência de um tipo de memória idêntica àquela a que Paul Connerton chama memória-hábito social (1993). Segundo ele, esta memória é inerentemente performativa, e por isso mesmo corporal, e tem sido quase esquecida nos estudos sobre a memória social2; no entanto, o lugar por ela ocupado, na memória social, é central e pode ser analisado nas cerimónias comemorativas. O ritual, entendido como um culto encenado, serve, assim, para fazer uma comunidade recordar a sua identidade, representando-a e contando-a numa metanarrativa.(...). Uma imagem do passado é, assim, transmitida e conservada por performances rituais (ob. cit.: 86). Ou seja, a permanência das manifestações do tipo «marcha» – desfiles nocturnos e colectivos de jovens, cantando, dançando e representando, mascarados ou não, pelas ruas da cidade – em certos universos culturais da cidade de Lisboa, revelam uma prática continuada, quase que poderíamos dizer, um hábito performativo localizado no substrato corporal da representação (ob. cit.: 86). Este ritual, cujo contexto e significado não terá, com certeza, permanecido fixo ao longo do tempo, tem servido para certos grupos sociais evocarem, articularem e transmitirem fatias importantes da sua memória social, independentemente de outros elementos instrumentais que os acompanhem.

Uma breve retrospectiva

10As festas aos santos de Junho-Santo António, São João e São Pedro-que se estendem a uma vasta área onde Portugal se insere (Caro Baroja, 1979 e Van Gennep, 1949) constituem, em Lisboa, uma permanência cultural indiscutível, testemunhada por vários cronistas e viajantes estrangeiros, pelo menos, ao longo dos últimos dois séculos (Arquivo Pitoresco, 1860; Oliveira, 1882; Beckford, 1988; Lichnowsky, 1845; Gomes, 1985; Branco, 1990).

11Santo António ocupa um lugar particular neste ciclo festivo3, pela relação indissociável que desde sempre existiu entre o governo da cidade de Lisboa e a celebração do aniversário da sua morte4. A introdução deste santo nacional no denominado «ciclo de S. João» acabou por dar uma certa originalidade às festividades próprias desta época, alongando a dimensão do próprio ciclo que passou a ocupar, praticamente, todo o mês de Junho, e conferindo-lhe, talvez por isso, uma maior importância no calendário festivo anual. As noites de Santo António, São João e São Pedro são, hoje, festejadas como três momentos de um mesmo ciclo festivo, que possui uma unidade interna claramente expressa na semelhança dos temas e elementos celebrados5.

12É natural que o culto antoniano tenha começado em Lisboa, pouco após a sua canonização, apoiado e secundado pelos conventos e hospícios da ordem franciscana que, entretanto se foram difundindo e multiplicando pelo país, fixando-se em Lisboa a sua sede (Moita, 1981: 11). É, também, de supor que o primeiro oratório público, em Portugal, tenha sido a casa onde ele nasceu, onde mais tarde se construiria a Igreja de Santo António, principal lugar de devoção dedicado ao santo. Esta igreja sempre pertenceu ao Município que, de certa forma, se apropriou das suas celebrações, ficando para sempre uma associação muito clara entre o poder da cidade e os seus festejos, o que contribuiu para que o Santo António se tornasse o popular padroeiro da cidade de Lisboa. De facto, tradicionalmente, existe uma íntima relação entre o culto do Santo e o município lisboeta, proprietário oficial da casa de nascença e da capela posteriormente sobre ela erguida. A iniciativa das próprias cerimónias religiosas é da responsabilidade municipal (Carvalho, 1991:31). E este mesmo autor quem sugere que o empenhamento municipal no culto antonino corresponde ao cunho popular da devoção e à ligação dos edis às camadas populares, como demarcação de S. Vicente, padroeiro oficial da cidade, mais ligado às classes dominantes urbanas (idem)6.

13A imagem mais generalizada, que se instalou a partir do século xvii7, representa-o como um jovem de rosto plácido e sereno, vestido de franciscano, segurando, com a mão esquerda um livro, sobre o qual pousa o Menino Jesus e sustentando, com a mão direita, a cruz e o lírio (Moita, 1981: 8) Por toda a região de Lisboa é comum ver-se esta imagem dentro de um nicho, escavado na parede, ou em registos de azulejos, normalmente sobre portas de edifícios (Chaves, 1925) e é esta imagem que irá ocupar, em dimensões e materiais diversificados, os variadíssimos tipos de pequenos altares e «tronos» de Santo António, que, ao longo do tempo, crianças e adultos têm por hábito construir por altura das suas festas.

14Embora as referências anteriores ao século xix, no que diz respeito ao quotidiano que se vivia em Lisboa, escasseiem, sabe-se que os festejos que ocupavam o mês de Junho se compunham de cerimónias oficiais e eclesiásticas e de manifestações de rua, mais ou menos espontâneas. Segundo fontes citadas por Castelo Branco (1990), para o século xvii e por M. Eugénia Gomes (1985) para o Antigo Regime, torna-se claro que, nestas épocas mais recuadas, as celebrações a Santo António e São João8 continham elementos de diferenciação importantes.

15Os festejos de Santo António eram claramente produção do poder urbano: da Igreja e da Câmara de Lisboa, por vezes com intervenção do rei, enquanto os de S. João se concentravam em torno das práticas rituais ligadas ao seu culto, tais como a queima de alcachofras, o saltar das fogueiras, marchas, danças e a erecção de mastros (Gomes, ob. cit.: 26-29). Pelas festas de S. João era (...) costume realizar-se um fogo de artifício na Rua de S. Roque, nas Portas de Santa Catarina e na torre sineira da igreja do Loreto, com as barricas, os manjericões e valverdes (Branco, ob.cit.: 165) Embora o fogo de artifício, as luminárias e as fogueiras, também estivessem presentes no Santo António, o seu ponto forte eram as celebrações oficiais e litúrgicas, assistidas pela família real. Estas homenagens concentravam-se na Igreja e Casa de Santo António, junto da Sé, lugar sacralizado.

16Castelo Branco (ob.cit.: Cap. XIX) afirma que as touradas e o teatro constituíam os divertimentos públicos mais importantes do século xvii. Para assistir a estes espectáculos, confluíam multidões ao Terreiro do Paço ou, mais habitualmente, ao Rossio, o mais popular dos dois largos. As touradas eram sempre integradas nos festejos que se realizavam por alturas de Santo António e, se por alguma razão a Câmara se tentava furtar à sua realização, acabava por ser obrigada a fazê-lo, tal era a expectativa popular. Ainda no século xix se destacavam as corridas de touros como um dos costumes mais antigos e enraizados e funcionavam, normalmente, como chamariz do povo, mobilizando as suas atenções em festas cerimoniais com uma componente político-religiosa menos interessante.

17Já em finais do século xv e início do século xvi, a cidade, mais tensa e mais densa, era palco constante de espectáculos de se ver e de se viver (...) Em média faziam-se pelo menos três procissões por mês, o que nos permite ver um percurso repetido no espaço urbano pelo elo de coesão máximo dos seus habitantes – a crença (Araújo, 1990: 48). A mais solene de todas era a do Corpo de Deus, na primeira Quinta-Feira depois da oitava de Pentecostes, entre Maio e Junho. As corporações, a Câmara, a Igreja deveriam fazer-se representar, com arcos e carros alegóricos, e as encenações e bailados também faziam parte desta festa-espectáculo que cruzava as principais artérias da cidade (idem: 48-49).

18O cortejo constituía um dos elementos centrais nas festas urbanas de seiscentos, afirma Castelo Branco (ob. cit.). Passavam por ruas ricamente engalanadas, seguiam numa ordem rigorosa, indicadora de uma determinada hierarquia, e os arcos constituíam um dos elementos decorativos imprescindíveis, sob os quais passava o desfile. Estes arcos eram da responsabilidade de diversas instituições, corporações ou colónias de estrangeiros residentes em Lisboa, sectores urbanos com algum poder económico e/ou político dentro da cidade e tomavam a designação de quem os elaborava: Casa da índia, Irmandade de S. Jorge, homens de negócio, confeiteiros, carpinteiros, italianos, franceses, etc. (ob.cit.: 162). Nestes cortejos, a cidade desdobrava-se em palco, cenário e plateia dos seus espectáculos (Araújo, ob. cit.: 55).

19Segundo Irisalva Moita (ob. cit.), provavelmente referindo-se ao século xix, o dia festivo anunciava-se 13 dias antes, durante os quais era rezada uma trezena e, por vezes, distribuído o «bodo de Santo António», que se repetia na véspera do dia celebrado9; neste dia, 12 de Junho, era mandado celebrar pela Câmara um «Te Deum», com a presença dos vereadores em traje de gala. O dia 13 de Junho, dia da morte do santo, era preenchido com missas, procissão e tourada. Pela manhã era rezada a Missa Pontifical na Sé e à tarde, saía do Convento de S. Francisco a imponente Procissão de Santo António, a mais brilhante festividade religiosa de Lisboa, depois da Procissão do Corpo de Deus.

Nela incorporavam-se 13 andores, com outras tantas imagens, entre as quais a de S. Francisco e, naturalmente, a de Santo António. As cerimónias oficiais terminavam com a tourada de Santo António que, todos os anos, nesse dia, a Câmara oferecia ao povo de Lisboa, e para a qual eram armados palanques de madeira no Rossio (Moita, ob. cit.: 15).

20Mas, para além destas celebrações oficiais, Santo António também era festejado pelas ruas, praças e terreiros dispersos pela cidade, à margem das organizações oficiais da Câmara e da Igreja. Surgiam arraiais por toda a cidade, onde se comia, bebia e dançava ao som de música estridente noite fora. Se ao longo do século xix existem algumas referências sobre este modo mais espontâneo de celebrar os santos, nas épocas anteriores existem poucas referências. Por isso, o testemunho que W. Beckford, no dia 12 de Junho de 1787 registava no seu diário, é tão citado: Há um rebentar de bombas, um crepitar de fogueiras e um soar de trompas em honra do dia de amanhã(...). por toda a parte, em todas as casas ao longo da costa de Belém, havia hoje a imagem de Santo António, no seu altar, ornada de flores e de pavios de cera (1988: 58).

21Estes altares floridos e iluminados, que Beckford testemunha trinta e dois anos após o terramoto, parece terem surgido após a destruição da Igreja de Santo António pelo cataclismo de 1755. Luís Chaves conta que a população de Lisboa empreendeu todos os esforços para que esta igreja fosse reconstruída10, mas havia outras prioridades, para onde o dinheiro era canalizado. Então surgiu uma prática, comparável ao presépio(...)uma forma expressiva e impressionante de obter, pelas esmolas recebidas(...), auxílio pecuniário para contribuição pública da construção da nova igreja: os chamados tronos de Santo António. Explica o autor: A expressão inicial do «trono» foi a de um altar, ou melhor, de tribuna – o trono sobre o altar-mor. Pequeno altar em baixo, sucessão de degraus, mais ou menos longa, até ao camarim ou nicho de imagem: o modelo criado transmitiu-se até aos nossos dias (1966: 144), embora se tenha complicado com a introdução de outras imagens e cenas relacionadas com a mitologia popular antonina.

Foto 35. Trono de Santo António

A construção dos santos populares

J. Benoliel, Arquivo Fotográfico – CML

22Como já foi referido, as festas a S. João aparecem, nestas referências mais antigas (séculos xvii e xviii) claramente associadas a certas práticas mágicas. As alcachofras, os manjericos e outras ervas aromáticas com poderes mágicos, as marchas e danças, as árvores e mastros festivos, o lançamento das «sortes», o fogo de artifício, são elementos que fazem parte da noite de S. João que, até ao princípio do século xx, são testemunhados em Lisboa. Nesta altura, já os festejos a Santo António incorporam elementos do culto e do imaginário de S. João, a ponto de hoje haver todo um conjunto de práticas e representações comuns aos dois santos mais importantes de Junho. As descrições que a imprensa periódica faz destes dias festivos permitem-nos perceber como Santo António e S. João quase que rivalizam em importância, e como as suas festas, a nível da participação popular, já se confundem nos elementos utilizados – e também a forma como o S.João é central na Lisboa ruralizada desta época e de como as celebrações oficiais a Santo António estão em plena decadência....Mas é sobretudo importante porque nos permite ter uma ideia do evoluir destas festas, das suas transformações ao longo do tempo, e, sobretudo, das suas permanências, das pré-existências – quase que poderia dizer-que os novos modelos festivos tão sabiamente vão manter.

Fase espontânea11 (finais de 800, início de 900)

23Contrariamente ao que iria suceder algumas décadas mais tarde, neste primeiro período parece haver uma intervenção mínima do poder municipal nos festejos do mês de Junho que ocupavam toda a cidade e, muito em particular, o seu coração: Praça da Figueira, Rossio, Avenida. É provável, porém, que a espontaneidade que caracterizava as festas desta época resultasse, fundamentalmente, de uma determinada conjuntura sociodemográfica. A cidade era atravessada, nestes anos, por profundas transformações demográficas, crescendo a sua população de um modo intenso e desgovernado. Esta afluência de imigrantes terá contribuído, sem dúvida, para o incremento de uma certa efervescência colectiva nesses dias festivos.

24A festa, com os seus excessos inevitáveis invadia as ruas e largos da cidade com enfeites, iluminações, fogueiras, fogos de artificio, bailes campestres e soirées12, música e grupos de jovens a percorrerem as suas artérias em ranchadas barulhentas. Quermesses e bazares com os seus sorteios, tômbolas, lotarias populares e, também, esmolas e bodos, em dinheiro ou géneros alimentares, constituíam igualmente momentos fortemente ritualizados congregadores das «comunidades» que os preparavam: grupos de vizinhos, colectividades ou irmandades. Também os conhecidos peditórios para os tronos, de Santo António, mais rarmente de S. João, era uma forma de circulação de riqueza que percorria toda a cidade13.

25A ida às fontes e chafarizes, as visitas aos jornais sediados no Bairro Alto, as visitas entre colectividades e bairros, a peregrinação inevitável ao Rossio e Praça da Figueira, representados como o coração simbólico da cidade, misturavam-se. A festa urbana a S. João, Santo António e S. Pedro incluía elementos de fundo rural, embora também incorporasse, como se pode ver, toda uma gama de aspectos diversificados, específicos da organização social e cultural de uma cidade. O ênfase posto nas iluminações públicas, numa cidade ainda maioritariamente às escuras, nos pontos de abastecimento de água e de comida – chafarizes e mercados – revelam aspectos tipicamente urbanos, que, de um certo modo, são integrados na festa.

26A centralidade simbólica que o grande mercado abastecedor da cidade assumia nessas noites – esse pólo de vida nocturna, esquecido da grande cidade nos restantes dias – constitui uma das peculiaridades da vida urbana da época. Plantas aromáticas14 e flores, frutas novas da época e alcachofras, manjares rituais, constituíam atracções fortes no mais importante mercado lisboeta da época: a Praça da Figueira. Aqui, o chinfrim e a berrata produzidos por assobios, cornetas de barro, rouxinóis e instrumentos de latão são descritos como verdadeiramente ensurdecedores, sobrepondo-se à música marcial das filarmónicas e bandas instaladas em coretos próprios. O mais antigo ponto de reunião e, por certo, o mais concorrido da véspera de Santo António é o mercado da Praça da Figueira (SEC, 13-06-1904)15.

27Esse núcleo festivo, ponto de confluência dos ranchos e das marchas aux flambeaux, local de diversão, por excelência, conjugador de diversas classes e grupos sociais, dos mais urbanos aos mais rurais, celebrava e celebrava-se nas comidas rituais, nas plantas aromáticas, na água – fonte da vida – nos bailes, brincadeiras e mais excessos juvenis. Os textos insistem na diversidade social que se produzia no seu interior: em torno do mercado se reuniam, não só todos aqueles que viviam o seu quotidiano em estreita ligação com ele – os vendedores, as criadas, as donas de casa, etc. –, como o funcionário público e o magala, como todo o tipo de migrantes rurais, da periferia ou do interior, que para a cidade se dirigiam pendularmente ou mais definitivamente. Às suas proximidades, sobretudo ao Rossio, afluíam predominantemente esses provincianos com diferentes níveis de enraizamento. De entre todos, ficaram para a história de Lisboa, em forma de personagens tipificadas, aqueles que incorporavam uma maior visibilidade, nos trajos, nos modos de ganhar a vida, quem sabe, se também no seu comportamento cultural: a varina, o padeiro, o galego, o cigano, o algarvio, a minhota, entre outros16. O povo, em grandes grupos, cantava e dançava no Rossio. São estes os maiores dias para ele (DN, 13-06-1875).

28De uma forma semelhante, o lugar central do chafariz, destino de peregrinações colectivas, revela-nos a importância desta outra peça central do décor urbano do século xix, ponto de encontro das classes populares, homens, mulheres e crianças. A fonte pública, que neste século proliferou tornando mais densos os pontos de abastecimento de água numa cidade ainda tão carente do precioso líquido, revela-se assim nas suas múltiplas funções urbanas: abastecimento, simbólico-sagradas, lúdico-festivas.17 Ambos – chafarizes e mercados – eram festejados na revificação do final da Primavera, porque alimentavam e davam vida ao povo de uma cidade.

29A tentativa de reprimir o acender de fogueiras na via pública, ou o controlo policial, sempre referido e anunciado nas notícias analisadas, constituem bons exemplos de uma outra particularidade da vida urbana: a efusividade da festa ameaça sempre transbordar para excessos dificilmente controláveis. A briga, o furto, a facada, os incêndios, eram frequentes no ambiente de euforia e de ingestão de álcool generalizado, facilitados pela grande concentração humana. O nome dos responsáveis pelo policiamento, profusamente louvados, e o pormenor do registo de qualquer acto menos digno, recriminando publicamente o seu autor, constituíam, afinal, o reforço dado pela imprensa ao trabalho das autoridades municipais e policiais. O medo, sempre latente, de que estas festas, transgressoras por excelência, onde a regra cedia o lugar ao excepcional, desembocasse numa revolta mais séria, é sobretudo visível no período que antecede a primeira República, pela proibição de marchas com um sentido político.

30Se quisermos delinear uma geografia social destas festas, neste período, vemos que toda a área que se pode chamar coração da cidade – Praça da Figueira, Rossio, Restauradores, Avenida – se revela como lugar mais importante da concentração e da festa nocturna. Muito embora a festa não se esgotasse aqui e se dispersasse por outros locais públicos de diversão, mais restritos: alguns jardins e quintas dos arredores, algumas feiras, além de lugares semi-privados, como sejam ruas ou largos integrados em bairros, vilas e pátios, quintais de palácios, colectividades e outro tipo de associações.

31Com efeito, Lisboa festejava assim os seus Santos Populares com uma pulverização de arraiais e bailes dispersos por todos os seus bairros mais antigos e pobres e uma circulação intermitente de marchas que visitavam jornais, chafarizes e mercados, identificados com o nome das ruas ou colectividades de onde saíam. Dantes, como hoje, eram os rapazes e as raparigas destes bairros «pobres» que faziam estas festas, que as preparavam, tomando conta da cidade por alguns dias, enchendo-a com os seus bailes, marchas aux flambeaux, o seu barulho que não deixava ninguém dormir, os seus excessos em dia de festa permitidos. Como se de um ritual de inversão se tratasse, com os jovens e, ainda por cima, pobres, a tomar conta da capital...

Fase de transição (anos 10-20)

32A partir da implantação da República assiste-se a uma quebra nestas manifestações festivas – pelo menos nas notícias que as reportavam. Estas são remetidas para cantos escondidos das páginas dos jornais e fornecem uma pálida ideia dos festejos nocturnos. A década de dez foi extremamente conturbada; a partir de 1916, as proibições são explícitas e a Praça da Figueira fica fechada durante estas noites. O pós-guerra não alterou profundamente o ambiente geral de crise económica, política, social e só com as Festas da Cidade, no ano de 1922, se notou um renascimento lento das noites dos santos de Junho.

33A partir de 1925 o ambiente de euforia e de festa voltou, definitivamente, às notícias dos jornais – para o que contribuiu, seguramente, a abertura, em festa, da Praça da Figueira que, até aí, estivera demasiadas vezes encerrada nas vigílias dos santos. Em 1925 «renasceu», em força, a tradição perdida.

34De uma forma geral, ao longo deste período, o S. João era mais efusivamente festejado do que o Santo António. O facto de as marchas saírem preferencialmente na sua véspera – e até na do S. Pedro – sugere a existência de novas vagas imigratórias de populações rurais, habituadas a festejar o santo precursor, e permite detectar o carácter fundamentalmente espontâneo e popular – produzido de baixo – destas manifestações festivas. Sem nunca terem sido completamente interrompidas, estas marchas iluminadas – ou luminosas, como muitas vezes são chamadas a partir de agora – continuam a sobreviver pelos anos 30 fora, em simultâneo, mesmo, com as Marchas dos Bairros «oficiais» e apesar das proibições camarárias.

35Os anos 20 são de uma riqueza extraordinária, pela sobreposição de práticas e discursos produzidos. Após o interregno de finais dos anos 10, onde o ambiente festivo não tinha grande espaço, Lisboa despertou com um entusiasmo bem vivo, contradizendo, de certa forma, as opiniões dos intelectuais que afirmavam o desaparecimento das tradições. Assistia-se, por parte desta classe fazedora de opinião, a um ocultamento da realidade viva e a um enaltecimento do passado, retocando-o com o objectivo de uma recriação futura. De facto, o tema de que «as festas de hoje já não são o que eram e estão a morrer» sempre existiu como uma certa incapacidade de compreender o presente e uma fuga nostálgica em direcção a um sentido passado, já conhecido ou efabulado, mais perceptível e securizante. As festas passadas, neste caso, simbolizavam uma cidade que desaparecia, um urbanismo que se extiguia impotente perante um novo que surgia a inaugurar uma cidade moderna, até certo ponto temida (França, 1992; Ferreira,1987). Contudo, é durante esta década de 20 que esse discurso acabou por integrar uma vertente pragmática capaz de conjugar esforços com o objectivo de uma recriação geral das festas, à imagem de um passado embelezado. Esta iniciativa nasceu do topo – conjunto de intelectuais e artistas, na sua maioria fazedores do jornalismo da época – para baixo, escolhendo um conjunto de aliados capazes de estabelecer a ligação com as populações de alguns bairros lisboetas – as colectividades. É de supor que a conjugação de esforços entre um trabalho intelectual e ideológico e o trabalho local, material e simbólico, da produção festiva, nas colectividades de bairro, não tenha surgido repentinamente, correspondendo antes a um modo de relacionamento pré-existente, complexo, entre essas elites locais, organizadas em associações, e elementos de uma elite cultural, sediada, em grande medida, no governo municipal. Este padrão de interacção social foi responsável, em larga medida, pelo sucesso que estas festas iriam ter como Festas da Cidade capazes de mobilizar, representar, memorizar e historicizar o povo trabalhador lisboeta.

36A prática festiva espontânea a que se assistira nas décadas anteriores transformou-se, ao longo os anos 10 e 20, numa mais institucionalizada, acompanhando as transformações políticas e económicas – sobretudo nos anos de crise – e as próprias mudanças da cidade de Lisboa. Neste período coexistem práticas mais espontâneas, em continuidade com os anos anteriores, e apropriações episódicas, por parte do governo municipal, do espírito da festa dos meses de Maio/Junho – como foi o caso das Festas da Cidade de 1913 e 1922 – inovando alguns aspectos que na década de 30 e 40 se iriam afirmar como indispensáveis em toda a festa oficial. Essa é a razão porque escolhemos designar este período por fase de transição.

Folclorização e institucionalização de um modelo (anos 30-70)

37Após a transição das décadas anteriores, que assistiram ao esmorecer do espírito da festa, logo seguido da sua revificação em moldes novos que levaram à crença de que os costumes se estavam a perder – os velhos costumes, que já não faziam sentido numa sociedade em mutação –, assistiu-se, nos anos 30, ao aparecimento de um novo figurino de festa.

38Aproveitando alguns elementos já existentes, e transformando-os-como a visibilidade e protagonismo de alguns «tipos populares» lisboetas, o gosto pelo espectáculo dos cortejos e desfiles (Araújo, 1990), a popularidade dos concursos, o fenómeno das marchas aux flambeaux, uma revalorização turística do coração da cidade, etc. – concebeu-se a preparação de um espectáculo que iria constituir a chave do sucesso, tanto do ponto de vista da adesão que suscitou, como do ponto de vista da apropriação municipal de festas que pertenciam mais ao povo do que a qualquer forma de governo. Além disso, as festas dos santos populares foram, a partir de então, quase completamente monopolizadas por esse espectáculo das marchas cuja cobertura intensiva é feita pela imprensa periódica.

39Os primeiros cinco anos18 em que o espectáculo das Marchas dos Bairros foi preparado, desde 1932 até ao início dos anos 50, foram os anos decisivos da definição e estabilização de um modelo. O primeiro ano – 1932 – constituiu-se como uma primeira tentativa ensaio, com grande sucesso. Concebido para um escasso número de marchas na véspera de Santo António, o espectáculo conheceu um tal sucesso que duplicou as marchas intervenientes alguns dias passados – na véspera de S. Pedro. Dois anos passados, voltaram a duplicar o número de marchas participantes e todo o modelo é redefinido e melhorado para, no ano seguinte, 1935, se instalar com raízes seguras – podemos dizê-lo, hoje, em 1994.

40Nesse ano, 1935, ficaram claramente definidos, para os anos seguintes, alguns parâmetros organizacionais, não só através da prática instituída por todo um complexo processo organizativo que implicava as colectividades como intermediárias entre as comissões do poder municipal e a população dos bairros – activando todo um conjunto de trocas financeiras, de bens, de serviços, de informação, de tecnologias, de influências, etc., que assim fortaleciam os elos de dependência (em relação ao poder municipal) e de controlo e poder (em relação, por exemplo, à construção simbólica do seu bairro) destas mesmas colectividades19 –, como também, mediante o registo escrito em jornais, folhetos oficiais, relatórios, regulamentos, protocolos. É assim que elementos tão díspares como apontamentos sobre a história das marchas, a partilha dos seus temas – por vezes tão claramente arbitrária –, a importância crescente dos arcos iluminados e enfeitados ou de algum acessório, a tomada de consciência do reforço de laços familiares e criação de novos ao longo dos ensaios se vão reproduzindo e integrando na memória dos grupos sociais que vivem esta implicação nas marchas de forma a que o passado real e o passado imaginado se acabam por confundir num único e consensual mito de origem do bairro e da sua marcha – sendo os jornais um dos seus principais difusores.

Figura 16. 1.a página do Diário de Notícias de 9/6/1935

A construção dos santos populares

41Foram catorze os bairros representados nas marchas, numa primeira partilha de temas históricos e míticos do imaginário de Lisboa, cuidadosamente seleccionados entre tantos outros possíveis: Alfama, que foi bairro marinheiro, de fidalgos e de gente que vinha de todo o mundo, Graça, Santa Clara, S. Vicente e S. Miguel das colinas altaneiras, Campolide, Benfica, Campo de Ourique e Cheias que trazem na roda larga das saias das raparigas frescuras da relva tenra, primavera e mocidade, Madragoa do Tejo, corações nos peitos das varinas, Alcântara e Ajuda, lenços que dizem adeus a quem parte e a quem volta das águas salgadas, Castelo e Mouraria, bairros velhos onde a cidade nasceu. Como no ano anterior, foram doze as marchas participantes no concurso, sendo as outras duas infantis (S. Miguel e Campo de Ourique) e portanto, extra-concurso. Como no ano anterior, no seu conjunto, elas representaram três grandes lugares temáticos da cidade, numa alusão a mundos já perdidos ou em vias de se perderem: a relação com o rio-mar e as áreas ribeirinhas; a relação com periferia ainda fortemente ruralizada da região saloia; e a centralidade simbólica do velho sítio da cidade, alcandorado nas imediações do castelo de S. Jorge a evocar a reconquista cristã de Lisboa aos mouros e o bairro-berço de Santo António. Alguns estereótipos dos habitantes de Lisboa, construídos em torno de uma pertença regional ou de uma actividade de rua – minhotos, varinas, vendedores ambulantes, fadistas – preencheram esta representação espacio-temporal de uma cidade. Efectivamente, foram estes os grandes temas e personagens tipificados, sobre os quais se teceram, até hoje, as múltiplas variações definidas por cada marcha. Duas vezes nos anos 30 e duas nos anos 40 foram o bastante para esta realização ter ficado na memória colectiva como um dos números mais bem conseguidos – senão o mais – e as marchas Ai! Vai Lisboa e Olha o Manjerico, de Norberto de Araújo e Raúl Ferrão, se terem para sempre ancorado nas profundezas do imaginário do povo de Lisboa, de todas as idades e condições.

42Os anos 50 constituem a época áurea das Marchas dos Bairros, prolongando-se pelos anos 60 fora. As marchas saem quase todos os anos como um dos números fortes das Festas da Cidade. O programa inclui sempre um desfile através da Av. da Liberdade, na véspera de Santo António, primeiro ascendente, a partir dos anos 60 descendente; e duas exibições no Pavilhão dos Desportos20 nas vésperas de S. João e S. Pedro21.

43Embora nesta última década (anos 60), a sua «assiduidade» seja máxima, realizando-se todos os anos o espectáculo, a verdade é que a rotina em que este acontecimento entrou, repetindo-se cada ano quase igual ao anterior, com os mesmos temas e idênticas vestes, não ajudou a incrementar o entusiasmo colectivo. No entanto, esta nota não passa de uma intuição por parte da autora destas linhas, provavelmente infundada, decorrente, em parte do «tom» das notícias desta época (as mesmas palavras a descreverem factos quase idênticos), em parte do contexto socio-político destes conturbados anos de 60 – início das Guerras Coloniais, entre outros factos maiores da história nacional-e, ainda, pelo facto de este espectáculo se ter acabado por extinguir, em 1970, com as características que até aí lhe eram próprias. Até ao 25 de Abril de 1974 os jornais passaram a referir a Grande Marcha de Lisboa, uma única marcha com um único par representativo de cada bairro e muitos profissionais do espectáculo à mistura-quer dizer, sem aquilo que de mais interessante tinha caracterizado este acontecimento que ao longo de quatro décadas se tinha conseguido manter, e que era a participação competitiva, através de colectividades locais, da população jovem de alguns bairros da cidade.

44Em relação às festas nos bairros, neste período afirmou-se o arraial como forma única de se festejar os santos de Junho. O arraial incluía – como hoje – as iluminações, os bailes, o cavalinho com música, o fogo de artifício e, por vezes, um trono a santo António ou janelas floridas concorrentes a um prémio da Câmara. Os arraiais mais importantes são inaugurados solenemente por dirigentes e funcionários da Câmara e outras instituições conceituadas e, não raras vezes, recebem prémios.

45Arraiais e marchas, tal como se foram produzindo ao longo destes anos, sob estreita vigilância e incentivo do governo municipal, contribuíram em larga medida a que uma hierarquia de bairros “típicos” fosse surgindo, colocando Alfama, Mouraria, Madragoa, Bica22, e Alcântara no topo da pirâmide, Bairro Alto, Castelo e Campo de Ourique logo de seguida, por vezes misturando-se com os anteriores. Ajuda, Campolide, Penha de França, Alto do Pina, Marvila, Benfica, Graça, Olivais, Santa Catarina, S. Vicente são bairros/marchas que pertencem a um nível inferior na escala hierárquica dos bairros «típicos» de Lisboa. Enquanto umas têm prestígio, são verdadeiramente bairristas, as outras são simples, alegres, entusiásticas...

46Uma associação entre a aldeia e o bairro prevalece, como modelo de interpretação da diversidade da realidade urbana lisboeta: uma realidade que só se conhece mitificando, idealizando esses bairros pobres de um centro histórico já, na altura, bastante degradado e envelhecido. Quatro anos mais tarde o concurso da aldeia mais portuguesa prolongava uma mesma vontade de estimular um bairrismo local, de base regionalista (Brito, 1982). Em ambos os casos se assiste a um complexo processo de construção social e simbólico: de invenção de comunidades homogéneas, detentoras de especificidades particularizantes – sendo a diversidade inter-aldeias, ou inter-bairros, a única possível-que se constituem como elementos estruturantes da vida nacional e/ou urbana, e que põem em marcha todo um jogo de interacções capazes de produzir alianças entre distintas camadas sociais e o poder político.

Revitalização do ritual (anos 80)

47As festas dos Santos de Junho, instaladas que estão em Lisboa, não mais deixaram de animar este mês. Preparadas com mais ou menos ajudas financeiras, desde o cantinho mais escondido até à rua mais imponente, Lisboa já não passa pelo Santo António sem se passear pelos arraiais que, por todo o lado e, mais densamente, no seu coração antigo, apelam à festa nocturna. O mesmo já não se pode dizer das marchas que, pela intencionalidade política e ideológica que as caracterizaram, sofreram um interregno alguns anos após a mudança de regime político, para só voltarem, timidamente, a surgir no início dos anos 80. Hoje – 1995 –, no entanto, elas constituem-se como o ritual nuclear das festas de Lisboa (Costa, 1991:56) e a sua transmissão em directo constitui o pico nacional e anual da audiência da RTP! (Carvalho, 1991: 28).

48Desde os inícios dos anos 70 que as celebrações públicas se expandiram por toda a Europa e Estados Unidos da América, resultando de criações originais ou de renovações de velhas celebrações (Boissevain, 1992: 1) Lisboa não constituiu excepção, muito embora com alguns anos de atraso: só em finais dos anos 80 – em 1989 – é que o ritual das marchas se voltou a enraizar no ciclo anual das celebrações públicas da cidade, de uma forma mais decidida e afirmativa do que nunca.

Cortejos, percursos, temas e imagens

49A criação do espectáculo das marchas dos bairros nos anos 30 e a sua reabilitação nos anos 80, evidencia, de um modo claro, a reelaboração de um conjunto de temas e imagens enraizados no imaginário urbano e reactualizados em novas práticas festivas com novos significados.

50Apesar do ritmo de vida urbano obedecer a condicionantes diferentes das do mundo rural, o seu ciclo anual é marcado por festividades idênticas. No entanto, sendo idênticas, no geral, as festas cíclicas ganham características diferenciadoras nos diferentes contextos em que se produzem. Como afirma Robert Muchembled, referindo-se às cidades do século xv e xvi, apesar de existir, no campo e na cidade uma percepção idêntica do universo (...) as originalidades da atmosfera urbana dão mais importância às festas e jogos populares (...) cada vez mais vigiados pelas autoridades, temerosas de excessos (...) (1978: 12) As festas de Maio e Junho, com as suas fogueiras, desfiles e cortejos, muitas vezes lideradas por organizações juvenis (idem: 184 e segs.) terão sido bastante reprimidas nas cidades ao longo dos séculos xvii e xviii, o que não terá acontecido no mundo rural. Segundo este autor, o tempo das grandes festas populares urbanas cede pouco a pouco o lugar à época das procissões especificamente religiosas (ibidem: 188).

51Sabemos que, em Lisboa, as procissões constituíam um espectáculo atractivo de toda uma cidade. A procissão de Santo António era uma das mais importantes, a seguir à do Corpo de Deus (Araújo, 1990). Durante os séculos xvii e xviii, as festas a este santo ocupavam bastante a Câmara de Lisboa – organizando procissões, missas solenes, bodos, touradas, etc. – esforço este que parece estar já em franca decadência no final do século xix, para só voltar a ser relembrado na década de 30 do século xx. E incontestável a relação do urbanismo medieval como o cortejo, escreve Renata de Araújo:

...a cidade é mais «pública», mais «urbana» onde é percorrida por todos. A cidade vivida nos cortejos e procissões é também a cidade vista nestas caminhadas. A apreensão visual do urbano é grandemente influenciada pelo percurso. Como bem notou Mumford: «A chave da cidade visível acha-se no cortejo em movimento» (1990: 55).

52Claro que não se pode comparar a cidade contemporânea com a cidade medieval; mas, se repararmos que os desfiles festivos que atravessavam Lisboa se foram simplificando cada vez mais, nos últimos cem anos, até percorrerem apenas o eixo Avenida da Liberdade, espaço público cerimonial, por excelência, da cidade de Lisboa (Costa, 1991: 60), não podemos deixar de referir que os quadros caleidoscópicos com que a cidade medieval se apresentava ao público se transformaram, na cidade de hoje, num único espaço-receptáculo da encenação dessoutro quadro caleidoscópico composto pelo conjunto das delegações dos bairros populares, que se apropriam ludicamente do centro da cidade (idem). Se na procissão a casa é invadida pela rua (...) na parada a casa desaparece como categoria (Matta, 1983: 128). Contudo – e esse é o objectivo destas comparações, mesmo correndo o risco de um anacronismo excessivo – o cortejo continua a marcar o momento especial, a ritmo de marcha, num misto de desfile carnavalesco, de parada militar e de procissão religiosa (Costa, ob. cit.; Matta, 1983).

53Em Lisboa, houve, em tempos, uma festividade urbana de grande relevo, laica, que movimentava e congregava amplos sectores urbanos, dos mais pobres aos mais ricos: o Entrudo. Não podemos deixar de sugerir um exercício de comparação entre as actuais festas dos Santos Populares e essa festa urbana, por excelência, que começou a decair ao longo da primeira metade deste século.

Nos tempos pré-cristãos, a chegada da primavera era, supõe-se, celebrada por uma festa que com o cristianismo se chamou Entrudo, o que significava «entrada». (...)Antes do século xviii o Entrudo era celebrado por todo o lado, nas cidades como nas aldeias. Mas, se nestas últimas, a festa não pareceu sofrer quaisquer modificações importantes, nas cidades produziram-se mudanças no século xix, tendo os jogos antigos sido, a pouco e pouco, substituídos por práticas vindas do exterior. Em Lisboa, foi possível traçar algumas das modalidades da passagem do Entrudo tradicional para o Carnaval e os seus cortejos (Queiroz, 1992: 29 e 39).

54Ao longo do século xix, sobretudo nas duas grandes cidades – Lisboa e Porto – foram surgindo práticas festivas novas, a configurarem um Carnaval, mais civilizado e menos bárbaro do que o velho Entrudo. Estas práticas, encabeçadas pelas camadas urbanas mais prósperas em teatros, hotéis e sociedades carnavalescas, publicitadas pela Associação da Imprensa, rapidamente se expandiram por toda a cidade e acabaram com o velho Entrudo. Em Lisboa, cortejos cintilantes percorriam a Avenida da Liberdade23, concursos entre famílias ou grupos mais alargados – como as referidas sociedades atribuíam prémios aos vencedores.

Assistiu-se, então, um pouco por todo o lado, à proliferação nas ruas, de bandos de jovens mascarados, cantando altíssimo ao som de instrumentos insólitos. Tratava-se de grupos de vizinhança, tomando cada bando o nome do seu bairro. A banda da Rua dos Remédios, a do bairro de S. Sebastião... Os membros destas bandas pertenciam a uma mesma camada social(...) Por vezes, afrontavam-se em batalhas na esquina das ruas até a polícia intervir (Queiroz, ob. cit.:33)24.

55A autora insiste que eram só os bandos de rapazes dos bairros pobres quem se divertia desta forma, correndo pelas ruas, representando farsas em versos, com temas emprestados à história do país, provavelmente aludindo à tradição das cegadas, antiga praxe, como refere Avelino de Sousa no seu Bairro Alto, cuja acção decorre pelo ano de 1896 (1944: 145 e segs).

56Enquanto as festas de Carnaval têm perdido, cada vez mais, importância e significado – sempre mais relegadas para o mundo infantil, como se tivessem deixado de fazer sentido no actual calendário –, as festas de Junho tornaram-se na verdadeira festa da cidade, anual, organizada pelo seu governo, com uma elevada participação colectiva.... Quase se poderia sugerir que os santos de Junho assinalam hoje, no ritmo anual da vida moderna, urbana, a nova entrada, não da Primavera – como o Entrudo – mas sim do Verão, como prenúncio desse período de descanso anual, de desertificação das cidades e hibernação das suas principais actividades, provocadas pelo êxodo estival dos seus habitantes (Caillois, 1979). Por outras palavras, nas duas maiores cidades do país, a festa do Santo António e do S. João, ambas em Junho, constituem-se como um rito de passagem entre dois tempos vivencialmente distintos: o tempo do trabalho e do descanso. Nas grandes cidades, a vida social esmorece no Verão, e recomeça com a rentrée do início do ano escolar. O ciclo de vida das cidades – e que acaba por se impor a toda a sociedade – morre no Verão e renasce quando o Outono se anuncia. E as festas dos Santos de Junho marcam, afinal, a sazonalidade da vida colectiva urbana.

57No seu conjunto, Lisboa sofreu algumas mudanças no seu panorama festivo de Junho, relacionando-se estas mudanças com as próprias transformações urbanísticas de Lisboa e mudanças político-ideológicas do seu governo. Assim, se, por um lado o crescimento da cidade para noroeste, em direcção ao planalto, fez surgir a rotunda do Marquês de Pombal como uma espécie de lugar de vanguarda dessa nova cidade que desbravava terrenos e baldios para norte – e como tal chegou a ter um arraial em princípios deste século – por outro lado, desde que o poder nascido do Estado Novo tomou em suas mãos fazer do mês de Junho o mês da celebração da cidade-símbolo da unificação e pacificação nacional, a festa deslocou-se para o Terreiro do Paço, a relembrar a época áurea da sua história – o tempo de D. Manuel e dos descobrimentos. Da mesma forma que este rei construía na cidade, construía a cidade e assim construía o reino ou a sua imagem, sendo a arquitectura e o urbanismo seus instrumentos de governação privilegiados (Araújo, 1990: 61), também os governantes do país de meados do século xx utilizaram instrumentos idênticos. O espectáculo da festa valorizava assim certos lugares da cidade, numa orientação pedagógica das memórias mais dignificantes e unificadoras de uma nação isolada.

58A festa que, nos tempos mais recuados se centralizava no Rossio e Praça da Figueira, estendia-se a estes novos pontos sacralizados pelo poder, transformando também o seu significado. O eixo nobre para o desfile nocturno das marchas passa a ser o eixo Terreiro do Paço – Rossio – Avenida – Marquês de Pombal, tendo mais tarde este percurso sido reduzido, fruto de novas épocas menos épicas no imaginário nacionalista. Podemos até sugerir, como metáfora, que o Rossio, como lugar tradicional do povo, que tão importante foi na fase das festas espontâneas, vai, nesta outra fase, perdendo importância em favor de lugares simbolicamente mais associados ao poder estatal – Terreiro do Paço – ou do governo racionalizador – Marquês de Pombal. A festa vai sempre festejando a nova cidade que se faz.

59Os bairros populares começaram, por seu turno, a adquirir uma visibilidade crescente à qual não está alheia uma intenção turística, transfigurando-se de uma forma controlada, com os seus arraiais e animação nocturna. Se ao longo de todo o ano, estes bairros sobrevivem à ruína, à degradação habitacional, ao envelhecimento e fuga dos seus habitantes, à pobreza e, mais recentemente, à droga, durante o mês das festas tornam-se os lugares simbolicamente mais cotados e apetecidos, compensados pela impotência de um governo que apenas assiste ao crescimento desgovernado de uma metrópole sem condições físicas para o ser, à custa da desertificação de um centro histórico cada vez mais envelhecido e arruinado.

60Assim se foi produzindo a consciência de uma diversidade de temáticas, por bairro, e, também, uma hierarquia entre eles, explicitamente iniciada pelo Estado Novo, embora Alfama seja já no final do século passado lida, por alguns intelectuais, como o lugar mais sacralizado da cidade, a rumorosa, a histórica, a marinheira Alfama, coração da Lisboa antiga [Castilho, 1981 (1893), vol I: 199], Verdadeiramente prenunciadora de futuros aproveitamentos, vale a pena transcrever a seguinte passagem de Júlio de Castilho, considerado o fundador da olisipografia:

61Situada nas escarpas do Tejo, tornou-se Alfama, desde que a população abastada se alastrou pelos arrabaldes, o verdadeiro marítimo (200). Toda essa grei pescadora, buliçosa como era, distinguiu-se mais de uma vez, por sentimentos piedosos e patrióticos (201). Castilho abre, assim, o seu capítulo sobre Alfama que, segundo ele, deveria ser o nosso museu. E encerra-o, do seguinte modo, dando o mote de futuros aproveitamentos, na caracterização impressionista que faz dos bairros da sua época – final do século xix:

Os antigos escritores dão o bairro da Pampulha como poiso de bruxas e mulheres de adivinhar. (...) O Mocambo (pertence) aos varinos. Os sítios da Mouraria aos fadistas de calça de boca de sino e chapéu de aba direita. S. Vicente é solar de nobreza velha legitimista. A Lisboa constitucional expande-se por toda a parte em largas ruas sem carácter (como o nosso tempo). O Bairro Alto não goza de bons créditos e tem registo policial. Alfama foi outrora a colmeia quase exclusiva dos tripulantes de caravelas e muletas. (...) Alfama é o nosso manuscrito; não o profanemos (idem: 208-9).

62Este texto de Castilho já anuncia, como vimos, um conjunto de temas e de imagens que continuam a alimentar o imaginário lisboeta e a sua mitografia local. A água, nas suas múltiplas figuras invocadoras do rio, do mar, de chafarizes e fontes, da pesca, dos marinheiros e, quase como matriz interpretativa, dessa época crucial da vida da cidade e do país – os Descobrimentos – constitui-se, sem dúvida, como o principal leit motiv, inspirador de múltiplas variações. Todas as diversidades se estruturam, em última análise em torno deste elemento todo poderoso: a divisão do trabalho, invocando os saloios da terra por oposição aos pescadores, às varinas, aos marinheiros, aos aguadeiros, enfim, à maioria dos que dão de comer e beber a uma cidade; a diversidade topológica, distinguindo os bairros ribeirinhos e os interiores, mais próximos das searas e hortas dos arredores – o que, em última análise coloca os primeiros no topo da hierarquia – bem visível, aliás, na análise das pontuações das marchas.

63Um outro eixo de leitura da sua história e do seu presente urbano, prende-se com a evolução da própria cidade, que estabelece um valor de antiguidade a certos bairros ribeirinhos: os que se situam no sítio de onde nasceu a urbe – ou seja na colina onde se situa o castelo de S. Jorge – e os outros, mais recentes na história da sua evolução. Alfama, Mouraria, Castelo têm, por assim dizer, um valor acrescentado na subtil hierarquia da sua simbologia. As marchas, com os seus temas, fornecem, assim, uma espécie de sistema classificatório (Lévi-Strauss, 1962) e, ao mesmo tempo, uma grelha de leitura da diversidade social – geográfica, laborai, histórica – que a caracteriza. Talvez por isso, estes são os aspectos que permaneceram e, provavelmente, irão permanecer para o futuro – porque os elementos que dão a estabilidade de uma ideia que se faz da cidade.

64Chegados ao presente, ponto de partida desta digressão pelo passado, chegou o momento de nos centrarmos no bairro escolhido, colocando uma teleobjectiva que permita entrever, no pormenor da sua microescala, alguns quadros de festa, passados e presentes, e contribuir, afinal, para um melhor conhecimento do modo como um bairro particular incorpora, inventa e reproduz a sua própria memória e imaginário, numa continuidade solidária com a cidade a que pertence.

65É em finais de Maio que o bairro vive, cada ano, um processo de embelezamento com os preparativos para o arraial. Entre Maio e Junho, Lisboa assiste à transfiguração, não só da sua Bica, mas de todos os seus bairros mais antigos, mais velhinhos, mais em ruínas: Alfama, Madragoa, Mouraria, Bairro Alto, Ajuda... Durante estes meses toda a cidade os olha como um símbolo vivo da sua história, incorporação de um passado mitificado – no fado, nas varinas, no rio, na saudade – da sua autenticidade, da sua convivialidade, da sua humanidade. Da mesma forma que por todo o país se vive a euforia estival e festiva durante o mês de Agosto, com a chegada dos emigrantes, na capital Junho é o mês das festas. Dos arraiais, das noitadas, das sardinhadas, da sangria e do arroz doce; da juventude, dos namorados, das saídas em grupos em busca da aragem e da música para bailar; das vistas sobre o Tejo e das luzinhas da Outra Banda, do reencontro com o seu povo, com os seus bairros pobres, com as suas raízes. Como se Lisboa se despedisse de si própria, anunciando o Verão que levará os seus habitantes em férias para fora, para o campo, para a praia, para o estrangeiro.

66Em Junho, a Bica renasce para a cidade. Surge iluminada por entre os altos edifícios que durante o ano a escondem, descobre-se a céu aberto e convida todos a visitarem-na. Durante um mês, a rua mais escondida desvenda-se na luz dos seus balões e do arco que se ergue sobre a entrada da Calçada da Bica Grande, como esse arco vistoso, muito bem engalanado, que em 1948 convidava quem passasse com a seguinte frase: Esta festa é para todos. A Bica saúda todos os bairros (DP, 12-06-1948). Anualmente, e durante este breve período, os seus habitantes abrem-se numa simpatia convidativa e o mais anónimo lisboeta ou estrangeiro sente-se um hóspede acarinhado nos poucos minutos que permaneça naquela calçada de escadinhas, apertada para tanta luz, enfeite e movimento. A Bica oferece comida e bebida, manjericos, música e simpatia. E fica mais rica. Não só com o dinheiro que, em troca, o forasteiro lhe entregou, de boa-vontade, mas sobretudo porque se deu a conhecer nas suas vestes mais dignas, mais brilhantes, mais compostas, e assim ficará na memória daquele que a visitou. E o nome do bairro fica para sempre inseparável das roupas com que se vestiu nos Santos, que revivificam a sua ligação ao tempo passado e o fortalecem para encontrar um sentido para o futuro. A sua marcha e o seu arraial são o seu cartão de apresentação aos olhos de uma cidade, fenómeno que não é de hoje e que regista uma permanência de muitas décadas, sedimentada no imaginário de Lisboa. Tal como a Bica, outros bairros sofrem este processo de inversão, mais correcto seria dizer, fabricam esta transfiguração anual que os fortalece nos benefícios materiais, simbólicos e emocionais que lhes traz.

Bailes, arraiais, bodos e marchas (1890-1932)

67Lugares da Bica aparecem frequentemente referidos nas letras negras dos dois mais importantes jornais lisboetas, a propósito das suas festas, arraiais e marchas. Mais raras e recentes são as referências à «Bica», no sentido mais geral de bairro, sem especificar as ruas em festa. Em 1905, por exemplo, um jornalista testemunha que houve festas nalguns sítios de Lisboa: Em Alfama, no Bairro Alto, na Bica, Esperança, Ajuda, realizaram-se alguns pequenos arraiais que foram muitíssimo concorridos, não se tendo dado desaguisado nenhum (DN, 13-6-1905). Em 1914 e 1916 notícias semelhantes resumem os bairros que mais sobressaíram com as suas festas: Em Alcântara, Madragoa, Poço dos Negros e Bica e ainda muitos pontos, os moradores organizaram bailaricos embandeirando e iluminando algumas travessas e becos onde dançaram animadamente até de madrugada (SEC, 24-6-1914). Já em 1930, prenúncio de uma nova era no modo de olhar a cidade de Lisboa e as suas festas, aparece a seguinte notícia: Nos vários pontos da cidade onde habitualmente se armam os arraiais realizaram-se este ano os costumados bailes populares que foram muito concorridos: na Graça, Santa Catarina, Benformoso, Bica, Alcântara, Monte, Penha, Cheias, etc.... (SEC, 13-6-1930). O que importa reter é que estas festas, espontaneamente organizadas pelos habitantes da cidade, se restringiam a áreas geográficas muito limitadas – ruas ou partes de rua, largos, becos, travessas – e o referente bairro – a sua designação – apenas servia como um identificador genérico para o leitor alfacinha.

68Bailes, soirées, arraiais, bailaricos e marchas andavam, nestes tempos mais recuados, normalmente associados. Não raras vezes uma marcha saía de um baile campestre ou arraial, circulava por algumas ruas vizinhas ou ia até algum mercado ou chafariz, e regressava ao seu ponto de origem, onde prosseguia a festa. No entanto, por facilidade de exposição, e também pela importância que a manifestação tipo marcha anos mais tarde veio a adquirir no panorama dos festejos alfacinhas, optou-se por uma separação, de certa forma arbitrária, entre as festas sediadas num local enfeitado e iluminado – como os bailes campestres ou arraiais que recebem convidados – e as marchas, mais ou menos iluminadas que circulam e visitam outros locais.

69A primeira referência a uma rua da Bica – a Travessa da Portuguesa – é feita no anúncio de um baile campestre, no dia de S. João de 1889, esclarecendo que iria ter lugar na porta número 35 e que seria familiar (DN, 24-6-1889). No ano seguinte, cabe a vez à Calçada da Bica Grande ser notícia, com um grande baile ao ar livre, organizado pela trupe Neuparth para a véspera e o dia de Santo António: Na trupe Neuparth, Calçada da Bica Grande, à Moeda, grande baile ao ar livre. A meia-noite distribuir-se-ão alcachofras a todas as damas. Só é permitida a entrada aos sócios e suas famílias (DN, 12,13-6-1890).

70A última década do século passado foi o tempo áureo das soirées e dos bailes campestres, tão profusamente anunciados nas «caixas» das Diversões para Hoje. As ruas da Bica não constituíam excepção e algumas colectividades, responsáveis por tal diversão, como era o caso da Academia Instrução e Recreio, na Rua de S. João Nepomuceno25 (DN, 24-6-1892) ou da Academia Recreio Musical 1° de Maio na Rua Duarte Bello, 18 (SEC, 12-6-1893) foram referidas. A Academia Recreativa Portuguesa Freitas Gazul, que primeiro aparece sediada na Rua da Boavista, 46, 1° (1893-1898) e mais tarde (1899-1902) na Travessa do Cabral, 35, 1°, também foi responsável pela organização de um sem número de soirées e saraus, além de marchas aux flambeaux.

71Também se faziam festas de beneficência. Em 1898, nos arredores da Bica, é noticiada uma quermesse: a kermesse no Largo de S. Paulo continua hoje com o concurso da banda de Infantaria 2. O bazar acha-se artisticamente adornado a flores naturais e iluminado à veneziana. À meia-noite vêm ao chafariz de S. Paulo em marchas aux flambeaux, diversas sociedades abrilhantar a festa (DN, 12-6-1898).

72Mas é entre 1898 e 1916 que as suas ruas são mais referenciadas nos jornais. São objecto de notícia várias ruas: a Calçada da Bica Grande, (em 7 anos), a Travessa do Cabral e o Largo de Santo Antoninho (ambos em 6 anos), a Rua dos Cordoeiros (em 5 anos), a Travessa da Portuguesa (em 3 anos) e, finalmente, a Rua do Almada e o Beco dos Aciprestes (em 2 anos).

73Um facto, porém, deve ser salientado. Embora as ruas da Bica sejam notícia em épocas recuadas, a Bica nunca aparece como bairro; a sua artéria mais central – a Calçada da Bica Grande-chega a ser associada à Moeda, o que denota, provavelmente, o pouco conhecimento público do lugar. No início do século, contudo, já era frequente as ruas serem identificadas pela sua proximidade à Bica.

74Esta exposição organizou-se de acordo com uma separação entre três Bicas, grosseiramente delimitadas: a de Cima, a de Baixo e a do lado de lá da linha do elevador (Cap. 3). De facto, não só as notícias em causa permitem uma percepção diferenciada destas três microterritorialidades como, sobretudo, foi um dos objectivos centrais deste trabalho a identificação de elementos de continuidade histórica que justificassem, até certo ponto, a actual representação de uma Bica fragmentada. Claro que uma maior proximidade com um destes fragmentos – a Bica de Baixo – me condicionou, em grande medida, não só o olhar que sobre os outros fragmentos deitei como, até, os próprios termos em que esta dimensão territorial foi analisada.

Bica de Baixo

75Em 1899, a Calçada da Bica Grande é, de novo, referida. A descrição feita neste ano é perfeitamente comparável ao arraial que hoje, cerca de cem anos passados, anualmente é feito, por grupos de moradores, que iluminam e enfeitam a rua de forma a sugerir um túnel multicolor:

Na Calçada da Bica Grande uma comissão composta de moradores festejou ruidosamente o S. João, embandeirando a rua e iluminando-a com balões à veneziana, cujo aspecto era deslumbrante. A rua aparentava um enorme tunel de fogo multicolor. Num coreto armado para tal fim, o Grupo Musical 1o de Janeiro executou um variado reportório desde as 8 às 3 horas da noite (SEC, 24-6-1899).

Uma descrição que vale por si. No ano seguinte, um bodo é anunciado:
A Comissão de Beneficência 24 de Junho de 1899, distribui amanhã, na Calçada da Bica Grande, um bodo a 115 pobres, às 10h da manhã. Esta Comissão festeja também hoje o Santo Precursor, saindo em marcha «aux flambeaux» pela meia-noite. Agradecemos os bilhetes que foram enviados aos nossos pobres (SEC, 23-6-1900).

76Tudo leva a crer que esta comissão se teria formado pelas festas de S. João do ano anterior, como se pode deduzir pelo nome. Quatro anos passados, em 1904, uma outra – ou seria a mesma? – comissão de moradores vai cumprimentar O Século: Alguns ranchos vieram ontem cumprimentar-nos à nossa redacção e entre eles a comissão dos festejos da Bica Grande, constituída petos srs. António José da Silva, José Quintino, Luiz de Athaíde e José Bernardo Figueiredo (SEC, 13-6-1904). Anos mais tarde, de novo uma visita de uma comissão de festejos, desta vez em marcha aux flambeaux:

Entre muitas outras marchas «aux flambeaux» que ontem nos vieram cumprimentar, devemos destacar como mais interessantes as seguintes...a comissão dos festejos da Calçada da Bica Grande, muito numerosa e de magnífico efeito(...) e o grupo da Rua dos Cordoeiros, à Bica, que além de aparatosas, traziam uma vistosa iluminação à veneziana. Muitos curiosos acompa-nharam no seu percurso as diferentes marchas (SEC, 24-6-1909).

77Convém sublinhar que a duas ruas da Bica correspondem duas marchas distintas. No ano seguinte, 1910, são mais uma vez noticiados os festejos a S. João na Bica Grande, bem como noutras ruas da Bica:

Continuaram hontem nas ruas da Barroca, Cordoeiros, Largo de Santo Antoninho, Travessa do Alcaide e Calçada da Bica Grande, os festejos de S. João, constando de iluminações à veneziana, bailes de roda, queima de alcachofras e marchas «aux flambeaux». Em todos estes sítios se brincou com entusiamo até cerca da uma hora da madrugada (SEC, 25-6-1910).

78E terminam aqui as referências a esta rua, para voltar, em 1926, com uma notícia de «bailes» na noite de S. João: (...) nas Travessas da Bica Duarte Belo, da Condessa do Rio, do Cabral (...) na Calçada da Bica Grande, na Madragoa, no Lumiar, Benfica e Poço de Bispo (SEC, 24-6-1926).

79Em relação ao Beco dos Aciprestes, apenas duas referências foram detectadas: Neste beco, situado na Bica Duarte Belo, houve ontem festas a Santo António, constando de iluminação, embandeiramento e bailes populares, que estiveram muito animados (SEC, 13-6-1907) e, em 1913, a notícia de uma marcha aux flambeaux. Perpendicular à Calçada da Bica Grande e entroncando mesmo no meio desta, o beco, como ali lhe chamam os seus habitantes, confunde-se bastante com as escadinhas e constitui, de certa forma, um seu prolongamento. Convém relembrar que, na sua designação mais estrita, a Bica inclui sempre o Beco (Cap. 3).

Figura 18. Bica do lado de lá da linha do elevador

A construção dos santos populares

Bica do lado de lá da linha do elevador...

80O Largo de Santo Antoninho – a Santa Catarina, à Bica Duarte Belo ou, apenas, à Bica – hoje completamente desaproveitado para as festividades, foi um dos lugares da Bica mais utilizados para os bailes, iluminações e convívio. Em 1899, 1903-5, 1909-10, as suas iluminações e bailes são, por vezes, descritas com olho de «etnógrafo»:

O Largo de Santo Antoninho, à Bica de Duarte Belo, estava enfeitado com balões pendurados em cordas completamente cobertas de buxo e presas a mastros que ostentavam bandeiras de várias nacionalidades. No centro do recinto erguia-se um enorme mastro com uma bandeira encarnada que tinha ao centro um elefante branco. D’este mastro partiam outras cordas guarnecidas de buxo, das quais pendiam alguns balões venezianos que iluminavam o recinto. Ao princípio do largo estava armado um coreto onde tocavam 6 indivíduos pertencentes a várias filarmónicas. Aos sons da música, bastantes homens e mulheres dançaram e cantaram animadamente até madrugada (SEC, 13-6-1904).

81No dia seguinte, 14 de Junho, a festa continuou, muito animada até de madrugada. No ano seguinte, no dia de S. João, voltou a ser notícia nas páginas d’O Século.

82Em 1909, a marcha da Rua dos Cordoeiros formou-se neste largo, antes de desfilar, e tudo leva a crer que aí terminou, dando lugar a um bailarico. No ano seguinte, refere-se que os rapazes e raparigas deste largo aí organizaram, como de costume, os bailes e marchas aux flambeaux. E terminam assim as referências ao Largo de Santo Antoninho, hoje tão votado à solidão.

Foto 36. Largo de Santo Antoninho (princípio do século xx)

A construção dos santos populares

J. Benoliel, Arquivo Fotográfico CML

83Com efeito, a Rua dos Cordoeiros, é sem dúvida um dos casos mais interessantes. Em primeiro lugar pela organização de marchas, tendo merecido uma delas, inclusivamente, o cliché de um fotógrafo, tal foi o deslumbramento produzido, como adiante será referido; em segundo lugar, pela riqueza informativa das descrições destes relatos que fornecem elementos que ajudam a dar uma profundidade temporal à observação do presente, determinante para a análise de um problema como é o da actual rivalidade que continua a opor os micromundos existentes na Bica.

84Tudo leva a crer que os arraiais do Largo de Santo Antoninho pertenciam aos habitantes desta rua, já que as notícias de ambos os lugares aparecem associados, tanto nos bailes como numa das marchas, pelo menos – e atendendo à ligação topográfica entre os dois. Como se pode ver no mapa da Bica (Fig. III, em Anexo), um dos extremos desta rua sobrepõe-se, por assim dizer, ao largo, dando a fachada dos prédios da rua para esse mesmo largo. De facto, o «vazio social» que parece existir actualmente nesta parte do bairro da Bica, bem visível na altura das festas de Junho, permite uma leitura, entre várias possíveis, destas notícias. Largo de Santo Antoninho e Rua dos Cordoeiros parecem confundir-se, sendo o primeiro utilizado pelas comissões de moradores dos Cordoeiros – como se pode bem perceber por esta notícia – e nunca pelos habitantes de outras ruas da Bica – atendendo a que é o único espaço plano e aberto para a organização de bailaricos, a erecção de coretos ou para os palanques que suportam as bandas musicais.

Bica de Cima

85Na Rua da Bica Duarte Belo foram enfeitadas algumas travessas com verdura e balões venezianos, organizando-se diversas danças, interrompidas, por vezes, pela chuva que caiu durante a noite (SEC, 13-6-1911). A Rua da Bica Duarte Belo é atravessada por quatro travessas: a do Cabral, da Portuguesa, da Laranjeira e do Sequeiro. O elevador da Bica circula sobre esta rua, por isso ela apenas funciona como ponto de referência não sendo possível qualquer arraial nesta artéria. Por vezes, as notícias referem as travessas da Bica Duarte Belo, que têm bailaricos ou iluminações, sem especificar quais; as únicas que aparecem algumas vezes são a travessa da Portuguesa e a do Cabral. A Rua do Almada, apesar de não ser uma travessa da Bica Duarte Belo, é como se o fosse, em termos da tipologia do seu edificado, das suas vivências, da população que aí habita. Por ser fechada de um dos lados, e embora seja paralela à Bica Duarte Belo, de facto, toda ela está voltada para esta rua, da mesma maneira que as travessas que descem em direcção a esta artéria. Em 1903 e em 1916 ela é notícia. Neste ano o Século regista que ela festejou o Santo António com arraial, iluminação à moda do Minho, bailes (SEC, 12-6-1916) e que organizou uma festa, tendo a sua comissão organizadora visitado o jornal.

86Na Travessa da Portuguesa, à Bica, houve arraial e baile, achando-se a rua embandeirada e a casa no 14, onde era o recinto da festa, guarnecida a verdura e iluminada. A comissão promotora da festa veio cumprimentar-nos, o que agradecemos (SEC, 13-6-1901). Como se pode ler, o referente desta travessa é a Bica, mas também é Santa Catarina:

Ontem à noite, a Travessa da Portugueza, a Santa Catarina, estava iluminada com balões, vendo-se ao centro uma coroa de flores e diversas bandeiras. Algumas raparigas moradoras na mesma rua, improvisaram um baile, dançando e cantando até bastante tarde. A Rua do Almada, no mesmo sítio, esteve ontem iluminada com balões e enfeitada com ramagem, uma coroa de flores ao centro e bandeiras, dançando-se ali animadamente até de madrugada (SEC, 13-6-1903).

87Dois aspectos sobressaem: a posição liminar, fronteiriça, destas travessas, e o facto de apenas surgir o lado a oeste do Elevador, pertencente à freguesia de Santa Catarina, e nunca o seu lado próximo das Chagas, zona burguesa, de características diferentes.

Foto 37. Travessa da Portuguesa

A construção dos santos populares

Arquivo Fotográfico – CML

88Em 1893, 1895 e 1898 a Academia Recreativa Portuguesa Freitas Gazul tinha sede na Rua da Boavista, no 46, 1o. Em 1899, 1900 e 1902 surge na Travessa do Cabral, 35, 1o. Para além das soirées e saraus que dava nas noites festivas dos santos, também organizava marchas aux flambeaux com filarmónica (DN, 23-6-1893; SEC, 24-6-1893; SEC, 24-6-1895; SEC, 23-6-1899; 12/23/28-6-1900; 12-6-1902).

A Academia Freitas Gazul, que sempre proporcionou aos seus sócios esplêndidas diversões, esmerou-se mais uma vez para que nas noites de hoje e de S. João, possam gozar dois brilhantes saraus que certamente serão concorridíssimos pela forma como sempre se mostram gratas e satisfeitas as pessoas que a eles assistem. N’esta última noite haverá marcha “aux flambeaux”, para o que há grande entusiasmo (DN, 12-6-1898).

89No entanto, a Travessa do Cabral, para além desta referência a uma sociedade que ali existia, também é notícia pelos seus arraiais e festas de rua. Assim, ela aparece com festa na véspera do S. João de 1908 e 1909, iluminando-se uma parte da travessa à veneziana e erguendo-se um coreto com um grupo musical (SEC, 24-6-1908 e 30-6-1909). Em 1915 noticiam as suas iluminações, em 26 e 28 os seus bailaricos (SEC, 25-6-1915; SEC, 24-6-1926; SEC,24-6-1928). E, finalmente, a terminar este período, no S. Pedro de 32, podemos ler o seguinte:

Veio ontem ao nosso jornal apresentar-nos cumprimentos a marcha da Travessa do Cabral. Os festejos populares que ali se estão realizando têm por objectivo angariar donativos para o cofre de pensões a viúvas e órfãos da PSP e para as juntas de freguesia de Santa Catarina e Marquez de Pombal26 (DN, 29-6-1932).

As marchas aux flambeaux

90Em 1903, marchas saídas da Rua dos Cordoeiros e da Calçada de S. João Nepomuceno, visitaram o Diário de Notícias e o Século, como se pode exemplificar com as duas primeiras referências encontradas nos jornais consultados:

Vários grupos e sociedades percorreram as ruas da cidade em vistosas marchas com balões venezianos e luz acetylene, fazendo-se acompanhar por filarmónicas e sol-e-dós. Os grupos Familiar Arte Nova, Recreativa União Familiar e Grupo La Chiquita, da Rua dos Cordoeiros, e Comissão Bicaense, tocaram sob as janelas da nossa redacção alguns trechos, amabilidade que muito agradecemos (SEC, 24-6-1903).
Um desses grupos organizado pela Commissão Bicaense 24 de Junho, trazendo à frente uma banda de música e composto de mais de 300 pessoas com numerosos balões e vistosos trophéus luminosos, veioà uma e meia da madrugada cumprimentar a nossa redacção, dando vivas ao Diário de Notícias e subindo uma deputação aos nossos escritórios onde deixou um bilhete para o bodo que a mesma comissão hoje distribui pelos pobres. Este grupo saiu da Calçada de S. João Nepomuceno...(DN, 24-6-1903).

91A Rua dos Cordoeiros merece uma reflexão à parte, não só por aparecer várias vezes noticiada, mas, sobretudo, pelo facto de as suas marchas mais interesse suscitarem: pela minúcia descritiva, nomeadamente do seu percurso, pela dimensão, pelo aspecto deslumbrante que terá, talvez, levado a que os jornalistas gastassem mais palavras com elas do que com quaisquer outras.

92Com efeito, em 1908 uma marcha saiu pelo S. João e tanto o Diário de Notícias como o Século a fizeram sobressair de entre as restantes. Na véspera de S. Pedro voltou a sair e então foi fotografada por A. Lima que publicou essa imagem no Diário de Notícias.

Uma das marchas mais vistosas que se organisaram na noite passada, em vários bairros populares de Lisboa foi, certamente, a da Rua dos Cordoeiros, à Bica, graças à actividade de uma comissão composta dos senhores Manuel Algarvio, César Vicente, António Nunes Ferreira, João Aveiro e Eduardo Marques. Cerca de 200 pessoas com balões de variadas cores, agrupados caprichosamente e de variadas formas, lanternas, umbellas, etc., etc., formavam um fantástico cortejo que amavelmente veio cumprimentar a nossa redacção desfilando em frente das nossas janelas. Fechava o luzidio préstito um «sol e dó» regido pelo sr. Joaquim Flosa, que tocava diversos trechos musicais atraz de um andor, lindamente enfeitado, sobre o qual se via um. rapazito «despido» de S. João com o tradicional cordeiro ao colo. Agradecemos a amabilidade do cumprimento (DN, 24-06-190827)
Também o Século, registou o acontecimento:...uma grande marcha com-posta de mais de 400 pessoas, empunhando balões, da Rua dos Cor-doeiros, e da Rua Sol, a Santa Catarina, acompanhada de uma banda de música e de vários andores muito pitorescos (SEC, 29-6-1908).

93No ano seguinte – 1909 – voltou a sair a marcha da Rua dos Cordoeiros, novamente na véspera de S. João, em direcção ao Bairro Alto para visitar algumas sedes de jornais. O seu percurso fez-se de costas voltadas para a Calçada da Bica Grande, como se pode perceber pela seguinte descrição:

A marcha da Rua dos Cordoeiros – Sai às 11 h da noite, formando no largo de Santo Antoninho e percorrendo o seguinte trajecto: Rua dos Cordoeiros, Calçada de S. João Nepomuceno, Boavista, Conde Barão, Rua dos Mastros, Poço dos Negros, Paulistas, Rua Formosa (ao Século), Rua Luz Soriano (à Vanguarda), Rua D’Atalaia, Rua Diário de Notícias, e Rua de S. Roque (ao Mundo), regressando pelo Camões, Calhariz e Bica à Rua dos Cordoeiros, onde começará o baile até de manhã. Amanhã tornará a sair às 3h da tarde, seguindo o mesmo percurso da véspera, demorando em frente da redação do «Mundo» onde será entregue por um juri composto de alguns indivíduos da mesma redação o prémio oferecido pelos moradores da Rua dos Cordoeiros ao dono do arco mais vistoso e bem enfeitado que fizer parte da marcha, regressando depois ao ponto de partida, onde começará o baile até de madrugada (DN, 23-6-1909).

94Nesse mesmo dia, o Século é visitado por outro grupo da Bica: Entre muitas outras marchas aux flambeaux que ontem nos vieram cumprimentar, devemos destacar como mais interessantes:... a comissão dos festejos da Calçada da Bica Grande, muito numerosa e de magnífico efeito(...) (SEC; 24-6-1909).

95Alguns aspectos, que se prendem directamente com o tema geral desta tese – a construção das identidades locais numa cidade – merecem ser realçados. Até que ponto estas comissões de festejos compostas de moradores, estas micro-redes de solidariedade e de relações se vêm federar num conjunto mais vasto, embora sempre familiar e conhecido, que configuraria realmente o «bairro»? poderíamos perguntar com A. Faure (1993:501).

96Por um lado, as marchas levam a designação das pessoas que as organizam, ou a rua que o grupo organizador habita. A representação territorial que elas levam para os jornais é, habitualmente, uma rua ou parte de rua, uma colectividade, uma empresa. Nunca um bairro. O referente bairro apenas surge como um identificador genérico, geográfico e social. A associação marcha/bairro, com a construção que daí decorre de um bairrismo que oporia bairros entre si, como se de aldeias se tratasse28 teria ainda de esperar algumas décadas para aparecer e é concomitante com a vulgarização do termo bairro popular. O que permite estabelecer uma conexão entre marcha popular e bairro popular, servindo as primeiras para sedimentar a existência dos segundos...

97O caso da Bica ilustra bem este fenómeno: num primeiro tempo, há notícia de várias marchas e como muito bem se pode ler nesta notícia, num mesmo ano vão visitar o Século duas marchas: a da Calçada da Bica Grande e a da Rua dos Cordoeiros. As marchas são organizadas por moradores de uma rua, ou parte de rua, de um beco, possivelmente de um largo – ou de uma colectividade; num segundo tempo, a Bica entra definitivamente no conjunto dos bairros populares através de uma marcha e de um arraial, produzido pela Calçada da Bica Grande e a sua colectividade.

98Por outro lado, a Rua dos Cordoeiros, nas pessoas que organizam a marcha, parece relacionar-se mais intimamente com a parte oeste de Santa Catarina do que propriamente com a parte baixa da Bica, de quem está separada por essa espécie de no man’s land que é a linha do elevador e o Largo de Santo Antoninho que, em tempos recuados parecia ser a continuação desta Rua dos Cordoeiros. Se fizermos uma comparação completamente anacrónica entre o percurso desta marcha e o percurso da actual marcha da Bica, quando dá a sua volta ao bairro anual, concluímos que ambas definem territorialidades diferentes (Cap. 7).

99No entanto, a referência Bica já aqui aparece com um certa força identificadora – Rua dos Cordoeiros, à Bica (e não a Santa Catarina). Prova disto é o facto de a Calçada da Bica Grande, vizinha desta rua, organizar ao mesmo tempo uma outra marcha. Por outro lado, a marcha da Rua dos Cordoeiros foi fotografada no Largo da Esperança – praticamente em território da Madragoa, o que nos leva a levantar a hipótese de que toda esta sucessão de bairros ribeirinhos, com habitantes ligados ao porto, ao mercado da Ribeira, ao rio e à navegação, (Madragoa, Santa Catarina, Bica) tivessem relações de vizinhança e de cooperação a nível laborai – um mesmo fundo profissional, quem sabe, étnico? – e, talvez por isso mesmo, devido a essa tão grande semelhança, assumissem comportamentos explícitos de grande rivalidade. Se sairmos do espaço limitado da Bica, e pesquisarmos um pouco o que se passa com os arraiais e marchas noutro bairro, por exemplo na Madragoa, vemos que é curioso que a sua organização recaia, frequentemente, nos mesmos anos, como se um espírito competitivo estivesse presente – para evitar a palavra «bairrista». Por exemplo, em 1908, surgem-nos estas descrições de duas marchas provenientes de duas ruas da Madragoa:

Marchas aux flambeaux – o cortejo que foi organizado pela Academia Musical 10 de Agosto com sede na Rua Guarda-Mor e que era realmente muito vistoso, pois nele se incorporou grande número de pessoas conduzindo muitos balões de variadas cores o que produzia belo efeito. Esta Academia teve a amabilidade de visitar o Século, gentileza que agradecemos (SEC, 25-6-1908);
Uma das mais bonitas marchas que nos passaram pela porta foi a das cabacinhas, da Rua Vicente Borga. Produzia um efeitarrão pela grande quantidade de balões, andores bem dispostos e numeroso pessoal, não lhe faltando o respectivo «fungagá», parte obrigatória em festanças daquela ordem (DN, 29-6-1908).

100Neste ano, também são notícia os vistosos festejos nas Ruas Vicente Borga, Travessa Nova de Santos e Guarda-Mor (SEC, 29-6-1908).

101A Marcha da Bica, como número do programa oficialmente organizado pela Câmara Municipal, apareceu pela primeira vez em 1952. No entanto, marchas locais, não deixaram de ser organizadas, como bem exemplifica o exposto.

102Em 1935, uma referência à «tradicional marcha da Bica» permite uma interrogação sobre a permanência destas marchas, ou duma marcha em particular, claramente conotada com o bairro. A tradicional «marcha da Bica» composta pela «trupe Jazz os Alegres» que reapareceu, organizada pelos senhores Romeu Viana, Manuel de Freitas, Carlos dos Prazeres Duarte e Alfredo Rodrigues, foi apresentar os seus cumprimentos ao Diário de Notícias, no mesmo dia que a «marcha da Madragoa» ensaiada pelos srs José de Barros, José Inácio, Filipe Jorge, Fernando Mais, Joaquim Barbosa e Manuel Capitão (DN, 13-6-1935). Num ano em que, pela terceira vez, eram formadas Marchas de Bairros – e a da Madragoa era uma delas –, as dúvidas sobre a antiguidade de tal «marcha tradicional», pela primeira vez conotada com o bairro Bica – como um colectivo susceptível de representação emblemática – não permitem, porém, alterar um dos factos sociais mais sugestivos que decorre desta análise histórica: a pulverização de pequenos grupos sociais, identificados com microterritórios sociais (ruas ou parte de ruas, largos, colectividades), os únicos capazes de empreender acções colectivas para a festa e o lazer.

A Bica dos Arraiais (1932-1970)

103Em 1932, ano da primeira experiência de organização de meia-dúzia de Marchas dos Bairros, a Bica é referida, pelo Diário de Lisboa, como um dos bairros onde houve bailes e música por alturas do Santo António (DL, 12-6-1932); outro periódico, O Século, localiza melhor os festejos da Bica: Rua do Almada. No S. João uma notícia deste mesmo jornal descreve um pouco melhor estas festas:

Na Rua do Almada dançou-se até alta madrugada. As ornamentações e iluminações a electricidade produziram magnífico efeito e a concorrência foi extraordinária. Como de costume ali, as diversões decorreram na melhor ordem, tendo a festa sido abrilhantada por um grupo musical (SEC, 24-6-1932).

104Em 13-6-1938 surge, numa crónica do Diário de Lisboa, quase por acaso, uma referência a um bailarico na Travessa do Cabral, um dos raríssimos que nesse ano se organizaram pelo Santo António – é este o leitmotiv dessa crónica. É de supor que ao longo destas décadas, até aos anos 50, tenha sido esta a zona da Bica – Rua do Almada, Travessa do Cabral que mais tenha festejado os Santos Populares.

Aqui perto em St.Catarina também os arraiais de São João são à bicha. Na Rua do Vale, na Rua do Almada, que por sinal é uma calçada, e onde os pares ora dançam mais devagar que a música porque vão a subir, ou dançam mais depressa porque vão na descida. Sob o palanque para a música, plantado à esquina da Travessa das Laranjeiras, lá está o bufete com um cozinheiro que, pela espessura e indumentária, era digno de chefiar a cozinha de um palace, e que fabrica umas iscas muito apreciadas em toda a redondeza (DP, 24-6-1947).

105Segundo a memória de um casal sexagenário, que ali viveu a sua infância e adolescência, a imagem destes arraiais surge sempre como pano de fundo às lembranças de alguns episódios da sua própria vida: Quando comecei a namorar a minha mulher, vinha para o arraial aqui da Rua do Almada., (ele); eu ficava à janela a ver o arraial, não me deixavam ir lá abaixo nessas alturas... (ela). Esta parte da Bica de Cima, para usar uma designação local, não só pertencia nestes anos à freguesia de Santa Catarina à semelhança de toda a parte de cima da Bica, como registava algum tipo de continuidade social com as ruas próximas desta freguesia, tal e qual como hoje, na fronteira que administrativa e socialmente continua a ser. Santa Catarina, nestes anos, surge com bastante frequência com os seus arraiais, verbenas, ruas com festa, mais do que a Bica, propriamente dita. A memória de alguns habitantes da Bica, com a paixão do fado, levou-nos, frequentes vezes, até essas verbenas e, muito particularmente uma, na Calçada do Combro, onde Natividade Pereira e Márcia Condessa começaram a sua carreira de cantadeiras. É bem possível que a esplanada de Santa Catarina, na Calçada do Combro, referida pelo Século de 13-6-1941 como um dos locais com festejos aos santos populares, fosse essa verbena tão nostalgicamente recordada como a Verbena da Poeira.

106No entanto, no final da década de 40 surgem alguns arraiais na Bica, mesmo no seu coração. Em 1948, ano em que nem o Bairro Alto nem Santa Catarina (bairros vizinhos) se manifestaram, é a vez da Calçada da Bica Grande se fazer notar pelos jornalistas.

Depois outro salto até às bandas da Bica, onde as festas de Santo António costumam decorrer com entusiasmo. Lá está o baile da Calçada da Bica Grande, onde a comissão caprichou. Toda a gente pode visitá-lo, pois à entrada vê-se um arco vistoso muito bem engalanado com uma legenda convidativa: «Esta festa é para todos» e logo no 2o arco um cumprimento gritante: «A Bica saúda todos os bairros». Mais acima, para quem não couber no trono de escadas da Calçada da Bica Grande, tem o bailarico da Rua dos Cordoeiros que, em animação, promete não lhe ficar atrás (DP, 12-6-1948).

107Apesar do nascimento tardio da Marcha da Bica em 1952, a verdade é que nunca este bairro deixou de festejar intensamente os santos populares. Os seus arraiais surgem, nas notícias, como dos mais expressivos de toda a Lisboa, e a riqueza das suas descrições, nos jornais são significativas. Não era por acaso que a primeira marcha cantava os seguintes versos:

Minha BicaTu és ricaE tens uns encantos taisQue quem vai à nossa BicaQue naquela encosta fica

Vai ver o que é arraiais...

108Fotografias e pequenas reportagens dos arraiais – sobretudo da sua Calçada da Bica Grande – aparecem inúmeras vezes nos jornais diários lisboetas. Uma das legendas, em 1953, acentua o seguinte: A Calçada da Bica Grande oferece um aspecto surpreendente e cheio de colorido, vendo-se sobre os arcos e festões a figura de Santo António (DP, 13-6-1953). Neste ano, emparelhada com Alfama, Madragoa, Bairro Alto e a Mouraria, a Bica, ornamentada a capricho, teve também festa rija.

O arraial da Bica, por exemplo, é dos mais típicos que animam esta quadra festiva do Junho lisboeta. A Calçada da Bica Grande – o coração do acidentado bairro – o Beco dos Aciprestes, a Travessa do Cabral e o Largo do Santo Antoninho enfeitaram-se de maneira bem expressiva e vão surpreender, logo à noite, os que por acaso ali passarem...Ver-se-ão por toda a parte arcos floridos e iluminados por cerca de 2000 lâmpadas com as 3 imagens luminosas de Santo António, S. João e S. Pedro e à entrada da Calçada da Bica Grande, do lado da Travessa do Cabral, uma sugestiva evocação da célebre «dança da luta», com 6 figuras numa armação gigantesca. Lá em baixo, do lado de S. Paulo, domina a entrada um grande arco ladeado por duas figuras da marcha popular da Bica, encimado pelo brasão da cidade. Festões de verdura, montanhas de flores (à volta de 5000), grandes vasos de manjericos e estrelas monumentais ornamentam as ruas do arraial da Bica, ao qual não faltam os escudos da cidade e da fundação, numa alegoria bairrista e patriótica. É claro que o arraial – como todos – é mais sugestivo e atraente durante a noite...E tudo isto se fica devendo ao esforço e ao espírito bairrista de pouco mais de uma dúzia de moradores da Bica, pertencentes ao Marítimo Lisboa Clube, que de há 6 anos para cá decidiu reviver uma tradição local e que – com o concurso entusiástico e desinteressado de raparigas e rapazes do bairro que confeccionaram flores, fizeram as armações, construíram as estrelas e os arcos, instalaram a luz eléctrica e montaram, enfim, o arraial com todos os seus atractivos (...) e só quem viu tudo aquilo em pormenor antes de se erguer o arraial, é que pode avaliar o esforço e a dedicação dos moradores da Bica, que desde meados de Maio trabalhavam sem cessar, de dia e de noite, para mostrar o seu bairro mais lindo do que os outros... (DP, 12-6-1954).

Esta Calçada torna-se bem conhecida nos anos 50 e 60

— O sr. sabe? Um livro francês que indica as coisas mais interessantes do Mundo, fala da Bica, das suas iluminações, do seu arraial.(...)... à noite, a Bica (...) não parecia a mesma. Porque o forte do bairro são as janelas, nada menos de meia dúzia lá surgiram, bem iluminadas a balões e muito caprichosamente ornamentadas. Pena que algumas se situem muito alto – num terceiro ou num quarto andar – e não se possa apreciar devidamente, cá da rua... (DP, 11-6-1958).

109Uma fotografia da inauguração do seu arraial, surgida num número da Revista Municipal, mostra um grupo de homens de expressão séria, de fato e gravata – vice-presidente da Câmara e seus acompanhantes – ladeados por alguns polícias, subindo as escadinhas; uma imagem da janela florida da Calçada da Bica Grande, 15 que alcançou o 1o prémio, aparece, igualmente, a ilustrar este artigo sobre as Festas da Cidade de 1958. Dois anos mais tarde, 1960, outra fotografia documenta mais uma inauguração oficial do seu arraial.

110A sua inclinação, bem como o facto de se encontrar entalada entre altos prédios cheios de janelas e varandins, intensifica o efeito cénico dos enfeites com que, pela quadra dos santos de Junho, os seus habitantes a vestem. Manifestação que não é inédita nestes anos, pois já em finais do século passado alguns jornais tinham sido atraídos por este mesmo facto, descrevendo-a como um túnel de fogo multicolor (SEC, 24-6-1899).

111Em 1960, os bairros citados com arraiais são Alfama, Bica, Mouraria e Madragoa. A partir daqui, começa a decadência da Bica – ou o silêncio devido a outros factores. Em 1968 a Calçada da Bica Grande surge mais uma vez em fotografia na primeira página do Diário de Lisboa, mas a propósito de um trono erigido por um artista local: Os festejos de Santo António são uma tradição lisboeta, transmitida de pais para filhos. A cidade, que esta noite se encherá com a alegria das marchas e dos bailes populares está pejada de tronos em honra do taumaturgo, como este na Bica, construído pelas mãos habilidosas do sr. Carapau (DL, 12-6-1968) é a sua legenda mostrando o sr. Carapau a trabalhar sob o olhar atento de três meninas sentadas nos degraus...

112Em 1992, três anos apenas a seguir ao renascer das tradições dos arraiais e marcha para a Bica – após uma paragem de quase 20 anos – ainda era comum alguns dos seus habitantes afirmarem que a Bica não era muito de fazer arraiais, que isso tinha começado há pouco graças a um grupo de moços que se lembraram de voltar a pôr de pé o Marítimo. De facto, entre o início da década de 70 e o final da de 80 – 1989 – o Marítimo Lisboa Clube esteve encerrado e as iniciativas locais para as festas dos santos de Junho hibernaram. No entanto, e acreditando nas fontes escolhidas, na Bica, e sobretudo no seu coração – as escadinhas – existia uma antigo hábito cultural – apesar de interrupções mais ou menos prolongadas – de enfeitar e fazer a festa na rua, desde há mais de 100 anos.

113A Bica dos arraiais, dos declives, dos degraus, dos recantos curiosos, das ruas velhas, das costureirinhas, dos trabalhadores do porto, dos homens das oficinas e das fábricas (...) da gente que não espera que o sol a acorde, (SEC, 22-5-1963) parece ser, afinal, semelhante a muitos outros bairros populares de Lisboa – Alfama, Mouraria, Santa Catarina, Bairro Alto, etc., etc. Os textos que tentam caracterizar os bairros populares de Lisboa desta época, apesar de relativamente pobres no conhecimento que reflectem do quotidiano do bairro, revelam uma dificuldade intransponível que é a de separá-los entre si: são as mesmas palavras, as mesmas imagens, que definem o seu presente; o que muda, são as imagens do passado escolhidas, arbitrariamente como emblema identificador de cada um deles.